Nos últimos dias, a nível nacional, muita tinta tem corrido sobre Guarda-Redes, de Casillas a José Sá, de Varela a Svilar - que se tornou o GR mais jovem de sempre a jogar na Liga dos Campeões - sem esquecer o histórico Joaquim Manuel Sampaio da Silva, na baliza apenas Quim, que se tornou no jogador mais velho a jogar na Liga Portuguesa.
Recentemente, tive também o prazer de assistir a um documentário da revista FourFourTwo chamado “Guarda-Redes: a profissão mais solitária do Futebol” do realizador Will Robinson.
É, por isso, momento oportuno para analisar o que está além da barba de uns ou das borbulhas de outros, compreendendo o que é atualmente ser GR: um indivíduo exposto e isolado numa posição única, ou apenas mais um jogador de equipa numa modalidade coletiva?
No início eram apenas os responsáveis por evitar que o objetivo do jogo se concretizasse, ficavam ali, solitários, para onde iam os menos hábeis de bola no pé (quem não conhece a frase “o gordo vai à baliza”?), uma posição onde na maioria das vezes eram vítimas no pior momento da equipa: o golo sofrido. Mas isto foi no início, o jogo mudou e com ele mudaram todas as posições, nomeadamente a de GR.
“Nos últimos 15 a 20 anos, a posição de GR tornou-se mais complexa.” – Lutz Pfannenstiel, ex-GR e atual scout do Hoffenheim.
A função de GR mudou radicalmente, assim como mudou tudo o que o envolve: dos métodos de treino aos equipamentos, passando pela maior de todas as mudanças: o papel que o GR pode assumir na forma de jogar de uma equipa. Por isto, cada vez mais há a preocupação de formar GR de antecipação, capazes de ler o jogo, dominando todo o espaço atrás da linha defensiva e assumindo-se como o primeiro elemento ofensivo da equipa, em vez de GR de reação, que se limitam a defender remates e cruzamentos dentro da pequena-área, a sua zona de conforto.
Aliás, definir hoje a importância de um GR é redutor. Como diz Bob Dylan, prémio Nobel da Literatura 2016: “A definição destrói... não há nada definido neste mundo.”
Por isso, recapitulando aprendizagens anteriores, já não se formam GR: formam-se jogadores, homens e mulheres, que jogam e acumulam no momento defensivo a vantagem de jogar com as mãos dentro da grande área. Quem não perceber isto não percebe todo o potencial que o talento de um GR pode trazer a uma equipa, não percebe porque um treinador, mesmo que obcecado pelo controlo absoluto do momento ofensivo, comece a construir a casa pelas fundações.
«Quando eu estava no Bayern, jogámos contra o Benfica na Liga dos Campeões e Ederson era jogador deles. Na análise ao adversário, vimos o pontapé de Ederson e marcámos uma reunião para analisar: “Pessoal, o que se está a passar? O que é aquilo?” - Guardiola
“Reposição de bola de Ederson tem de ser estudada” – Tite
Em todo um mundo novo que inova e cresce ao nível dos GR, o trabalho dos técnicos desta área específica é decisivo e uma mais-valia da qual toda a dinâmica da equipa pode beneficiar. Nas melhores equipas europeias, que servem de referência e de motor de desenvolvimento, ou onde estão os melhores do mundo na posição, vemos GR de diferentes compleições físicas, diferentes características técnicas, capazes de dominâncias táticas diferentes e de diferentes… idades: De Buffon a Donnarumma, de Navas a Stegen, de Ederson a De Gea, passando por Neuer, Courtois, Oblak, Patrício… e muitos outros.
A todos, e mais alguns, reconheceremos competência mesmo que tenhamos preferências. A todos, também seremos capazes de apontar limitações ou de recordar um lance, um erro, um golo sofrido… por isso é que um GR é um trabalho inacabado, de contínuo aperfeiçoamento, de constante adaptação, em busca do centímetro que faltou ou do centésimo de segundo que sobrou.
“Atualmente a paciência é um ponto crítico. As melhores defesas que fiz foram em momentos cruciais de jogos. Lembro-me de ter de ser paciente… e a paciência pode ser meio-segundo. ” – Tim Howard.
No que se refere ao treino e à preparação, há aquilo que o GR evidencia e o que está oculto. Por vezes, ser capaz de transparecer uma elevada segurança para fora, mesmo que tudo esteja a ruir por dentro. “Se eu mostrar que não estou tão assustado como o avançado está, já é uma grande vantagem.” Jens Lehmann
Aqui chegados, podemos concluir que o treino mental, integrado na equipa ou específico para a posição, pode reforçar nos GR algumas competências, importantes para todos, mas essenciais para a sua afirmação. São elas:
Tomada de decisão – capacidade de optar pelas soluções mais eficazes e adequadas em diferentes situações, no momento defensivo (agarrar ou socar?) ou ofensivo (bater a bola ou jogar curto?) e perante diversos constrangimentos (debaixo de chuva, sob fadiga, no último minuto…);
Concentração – competência para identificar, selecionar e bloquear corretamente os estímulos de forma a orientar o foco para a ação própria em função do acontecimento que despoleta a necessidade de intervenção;
Autorregulação emocional – conseguir, em função de acontecimentos positiva ou negativamente impactantes, gerir as emoções de forma a manter-se sereno para as intervenções seguintes;
Confiança – manter o nível de certeza nas suas capacidades e na sua preparação, sem duvidar do que é capaz, recordando-se do que já conseguiu e do que ainda pode atingir;
Resiliência – superando as adversidades, os erros, as frustrações, voltando sempre a um ponto de equilíbrio, com novas motivações e objetivos, a cada dia num novo ponto de partida.
De tudo isto se farão os GR do futuro, através do treino e também de uma cultura desportiva que valorize o seu contributo, reconheça arte nas suas intervenções e valorize os seus feitos. Com técnica, com músculo, com um pouco de loucura. E paciência, porque os erros vão sempre existir, e a força física vai ajudá-los a fazer o seu trabalho, mas é a força mental que lhes vai permitir sobreviver.