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Visão de jogo
Pedro Silva
2017/10/04
E0
Espaço de análise da actualidade desportiva, onde o comportamento, a emoção e a razão têm lugar privilegiado. Uma visão diferente sobre o jogo, para que o jogo seja diferente.

Nos vários setores, do desporto ao trabalho, da arte à ciência, acredito nesta máxima: não ignorar sintomas quando se ganha; não pôr tudo em causa quando se perde.

É particularmente difícil, mas igualmente importante, porque o envolvimento emocional, em cada vitória ou derrota, reduz a clarividência e leva-nos a ignorar sinais. Por vezes, acontece outro fenómeno em simultâneo: demoramos a perceber os sintomas e isso leva a um atraso na melhor resposta.

Vem isto a propósito do início de época do Benfica, que vive um momento delicado, fruto de exibições fracas e resultados negativos. O Benfica está mais fraco, é inegável. Custe o que custar, são os mesmos números de que Rui Vitória se socorreu para poder ver o copo meio-cheio, que reforçam que o copo está meio-vazio.

Na época passada, à 8ª jornada, o Benfica era líder isolado com 22 pontos; nesta época, é terceiro com 17. Há um ano, tinha mais golos marcados, menos sofridos e ainda não tinha perdido para a Liga. Obviamente, hoje o cenário é pior.

Coincidentemente, os números revelam outro facto importante: Porto e Sporting estão mais fortes. Ambos têm mais pontos, melhores classificações e ainda não perderam.

Resumindo: estão melhores quando comparados consigo próprios e melhores quando comparados com o campeão em título.

Esta é apenas a realidade dos números, do ponto de vista objetivo e quantitativo.

Na perspetiva qualitativa, a diferença continua e é maior. Júlio César, ou Varela, não são Ederson. André Almeida não é Semedo. Jardel não é Lindelof… etc… É demasiado óbvio. O Benfica joga pouco. Faltam ideias, dinâmica e confiança. Quando falta tudo isto mas há resultados, passa-se entre as gotas da chuva. Quando falta tudo isto e não há resultados, há que parar para pensar.

Se o futebol é o momento, que momento é este que o Benfica vive? A que se deve? A quem se deve?

“Será chuva? Será gente? Gente não é certamente e a chuva não bate assim.” – Balada da Neve, Augusto Gil.

É uma crise? É uma fase? Boa não é certamente e os campeões não se fazem assim.

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O Professor Doutor José Soares, catedrático da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto na área da Fisiologia, é um homem atento ao fenómeno do desporto e, com o seu conhecimento, consegue encontrar uma ligação direta entre este, a sociedade e a sua área de especialização, a saúde. No seu livro “A empresa como organismo vivo”, de forma simples mas cientificamente suportada, apresenta algumas analogias que podem ajudar a perceber melhor o momento do Benfica:  

“O nosso organismo tem uma resistência e uma capacidade de adaptação impressionantes. Todavia, elas não são definitivas. Normalmente o corpo avisa-nos (sinais e sintomas) do que pode acontecer quando algo está a ir mal (fatores de risco). As organizações funcionam da mesma forma. Estão sistematicamente a enviar-nos mensagens de bem-estar, de mal-estar, de desconforto, de dor, de morte iminente. (…) Só que, para nos apercebermos do que quer que seja, temos de os conhecer. (…) Para os valorizarmos, temos de os conhecer e reconhecer. (…) Mas, tal como no corpo, também nas organizações raramente há apenas um sinal ou sintoma preocupante. É o conjunto e a interação dos sintomas que são prejudiciais.”

O Benfica tem, na sua estrutura diretiva, na sua equipa técnica e no seu plantel, pessoas competentes e experientes mais do que o suficiente para reconhecer estes sintomas. Têm essa capacidade e essa responsabilidade.  

Mas a verdade é que não o fizeram, ou pelo menos não o fizeram de forma concertada, prática e eficaz. Não reconheceram os sintomas próprios (menor qualidade na equipa e perda de jogadores-chave) nem os fatores de risco agravantes (os concorrentes mudaram para melhor).

Na pré-época, dizia Rui Vitória: “Uma das coisas que, se calhar, levamos de avanço em relação à maioria das equipas, e que já há muito tempo que eu falo nisto, é que antecipamos muito os cenários.”

Na teoria, totalmente correto. Na prática, não podia ser mais errado. Com maiores responsabilidades diretivas, técnicas ou operacionais, o Benfica começou uma época que lhe pode dar um feito único na sua história, ao conquistar o seu primeiro penta e igualar o feito do Porto, de calças na mão. Ainda vai a tempo mas não está no caminho certo.

Quando é diagnosticada uma doença grave a alguém, é frequente pessoas questionarem-se de onde veio a doença, que sinais deu e possam ter sido ignorados. É nesse momento que se recordam de pequenos sintomas que, desvalorizados na altura, hoje fazem todo o sentido.

Desde a época passada que o Benfica apresenta sintomas do que se está a passar. Em muitos jogos, o Benfica apresentou uma supremacia coletiva inquestionável. Noutros, o talento individual disfarçou as limitações coletivas e é suposto ser assim, é para isso que se contratam os melhores. Com o aproximar do fim da época, foi cada vez mais o talento individual a aparecer e menos o processo coletivo. No início desta época foi mais do mesmo, com a agravante de já cá não estarem alguns dos que tinham o maior talento. Até aos dias de hoje, os sintomas agravaram-se, a equipa joga cada vez menos e tem menos talento individual. Os jogadores são inferiores, a equipa joga pior, o clube ganha menos.

Do topo até à base, da SAD ao balneário, há um homem-chave para encetar a mudança que o Benfica precisa: Rui Vitória. Mas para o Benfica mudar, o treinador tem que mudar primeiro. É ele, em grande parte, responsável pelo momento e é nele que tem de começar a mudança.

Rui Vitória chegou ao Benfica com todo o mérito, num percurso feito a pulso, com resultados bons e consistentes. Teve uma herança pesada, foi arrastado para a lama e de lá saiu digno vencedor. Ganhou como o antecessor mas acrescentou-lhe a promoção de jovens valores e afirmou a equipa na Europa, duas limitações apontadas a Jorge Jesus. Impôs-se naturalmente com a sua humildade, competência e resultados. Tem todo o mérito no que conquistou e mereceu-o.

Tudo isto é verdade, mas para ser a solução e não se tornar parte do problema, Rui Vitória tem de cair nele próprio… e os sinais que dá são de quem ainda está em negação. Este que temos hoje perante nós, não é o mesmo treinador que chegou e venceu. Nas últimas semanas tem revelado formas de estar, analisar e comunicar absolutamente desastrosas. No banco, parece perdido, prima por ações reativas em vez de proactivas e sente o chão a fugir-lhe debaixo dos pés: vê-se isso na sua expressão facial. Na relação com a imprensa, que sempre foi um dos seus pontos fortes, quer na forma quer no conteúdo, interpreta as questões (a maioria legítimas) como ameaças, altera rapidamente o tom, deixa jornalistas a falarem sozinhos em direto e abandona conferências de imprensa quando lhe apetece. Perante o inequívoco, desculpa-se com as estatísticas. Quando nem as estatísticas o salvam, atira para o lado, diz que em crise estão os outros que não ganham há anos. E quando é goleado e humilhado perante a Europa do futebol onde o Benfica tem história e onde ele teve bons resultados… diz: “São fases que vão passar”. Esta não pode ser resposta de um treinador de alto rendimento!

Pior que a doença é a negação da mesma ao longo do tempo. Este foi o mal do Benfica nos últimos meses e em particular nas últimas semanas. Para mudar, tem de reconhecer que algo não está bem, sem ter de pôr tudo em causa. Nesse momento poderá começar a mudança do Benfica. Quanto mais cedo o fizer, melhor para si mesmo. Aceitar, analisar, mudar, preparar, melhorar, melhorar, melhorar… não conheço outro caminho.

Rui Vitória será a peça nuclear nesta engrenagem. É ele que pode catapultar a equipa para essa mudança e retomar o caminho dos bons resultados e das boas exibições. Tem competência e experiência para isso, basta que aceite o atual momento, o compreenda e perceba qual é o seu papel.

É cedo, muito cedo, para eliminar candidatos ou para embandeirar em arco. O Benfica vai melhorar (só pode melhorar…) e vai voltar mais forte. Esta paragem do campeonato pode ser o momento certo para todos perceberem o buraco onde se meteram e para iniciarem a mudança.

Rui Vitória tem de ser o primeiro.

“Somos todos prisioneiros do passado. É difícil pensar nas coisas exceto da forma em que sempre pensámos nelas. Mas isso não resolve os problemas e raramente muda qualquer coisa.” Charles Handy



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