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2024/04/15
E4
«Campo Pelado» é o espaço de opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Uma homenagem ao futebol mais puro, mais natural, onde o prazer da camaradagem é a única voz de comando. «Campo Pelado».

* Chefe de Redação 

O abalo teve repercussões sísmicas na nossa acnosa adolescência. Ao nervoso Bleach (1989) sucedeu Nevermind (1991), uma masterpiece plena, voz de putos angustiados e demasiado tempo livre.

O pano caiu com In Utero (1993), a obra das mensagens enigmáticas, por decifrar, o aviso para o mal que a seguir se abateria.

E depois... nada. O Fim antes do tempo certo.

5 de abril de 1994. O dia da morte de Kurt Cobain, a partida pré-anunciada de uma alma atormentada por fantasmas interiores, a terrível heroína a corroer-lhe as veias. Dois meses antes, tocara ao lado de Dave Grohl e Krist Novoselic, o trio dos Nirvana, pela única vez em Portugal, no Dramático de Cascais.

Há 30 anos, celebrados na passada semana por fãs e discípulos, - como se Cobain seguisse vivo e de boa saúde -, toda uma geração recebeu a notícia em choque. Os mais fiéis choraram, rasgaram vestes, passaram o dia agarrados a guitarras acústicas e a simular o tom grave de Kurt Cobain.

Na minha escola, a Secundária Clara de Resende, mesmo em frente ao Bessa, não foi diferente. O Pica, o nosso Cobain privativo, passou de Come as You Are a Something in the Way, de Lithium a Smells Like Teen Spirits, enrouquecido na dor.

Em dor, acreditem. Kurt Cobain era por esses dias a maior figura pop da MTV, quando a MTV ainda se dava ao trabalho de passar música boa.

Lembro-me do meu primeiro encontro com essa malta de Seattle, camisas de flanela, penteados desgrenhados e fúria, muita fúria. Verão de 1991, uma tarde de Amiga 500 (o melhor computador para videojogos da época) no quarto do meu compincha Nuno Magalhães e, do nada, aquele refrão, aquele clip.

With the lights out, it's less dangerous
Here we are now, entertain us
I feel stupid and contagious
Here we are now, entertain us

A mulatto, an albino
A mosquito, my libido, yeah
Hey
Yeah

Aos 13 anos, eu só espreitava o amor pelo buraco da fechadura, como escreveu um dia Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico. Para mim, para nós os tímidos, aquelas imagens foram a revolução física que as nossas hormonas urgiam.

Foi tudo brutal, frenético e breve. Da primeira vez até ao suicídio de Kurt Cobain, nem três anos passaram. O leviatã da fama levou os olhos azuis, o cabelo louro, a expressão enganadoramente angelical.

O que tem a morte de Cobain a ver com futebol? Memória e coincidência.

Precisamente no mesmo quarto do Nuno, onde conhecemos Kurt e respetiva pandilha, assistimos poucos dias antes ao icónico Werder Bremen-FC Porto (0-5).

Apesar de serem escavações arqueológicas para a geração agora com 20’s e 30’s, estas sensações são comuns e partilhadas pela malta criada nos anos 80 e 90. Foi ela, aliás, a despertar-me estas imagens no dia em que se assinalaram os 30 anos (!) do falecimento de Kurt Cobain.

As marcas de delírios juvenis, de um certo deboche nos verões de três meses, permanecem muito claras. Houve Nirvana sem fim, em matinés e madrugadas de Championship Manager, em marquises sufocantes e sótãos bafientos. Houve rock e futebol, de mãos dadas.

O exercício nasceu nestas recordações de boa nostalgia, partindo para a curiosidade de perceber onde andavam por esses dias os atuais protagonistas do futebol português.

Alguns exemplos.

Rúben Amorim tinha nove anos, vivia em Alverca e jogava já nas escolinhas do Benfica.

Sérgio Conceição representava o Penafiel, na II Liga. Tinha 19 anos e faria 90 minutos em Campo Maior, dias depois.

Roger Schmidt já contava 27 anos e era futebolista. Vestia a camisola do modesto Paderborn-Neuhaus, onde concluíra a formação.

Roberto Martinez andava pela equipa B do Zaragoza, longe do sucesso e mediatismo atuais.

André Villas-Boas era vizinho de prédio de Bobby Robson e dividia os dias entre o Colégio do Rosário e os juvenis do Ramaldense.

Rui Costa era titularíssimo do Benfica. A 9 de abril faria 90 minutos na derrota por 1-0 na Maiacasa emprestada do Salgueiros.

Pinto da Costa? Presidente do FC Porto, claro, prestes a jogar a meia-final da Liga dos Campeões em Barcelona.

Cristiano Ronaldo já ia prometendo coisas bonitas (vénia a Artur Jorge, o Rei) nas escolinhas do Andorinha.

Recorrendo à biografia de Jim Morrison, outro nome que partiu demasiado jovem no comboio do Big Adios (um abraço ao Álvaro Costa), Daqui Ninguém Sai Vivo e o tempo corre à mesma velocidade para todos, ricos e pobres, arrogantes e humildes, diretores e roupeiros. 

Uma mensagem útil a alguns nomes do nosso futebol.

PS: escrever sobre futebol sempre foi, para mim, um prazer. Não só sobre o jogo, mas sobre as personagens e as histórias que dele fazem parte. Quando esse mundo se une aos da música, cinema e/ou literatura, normalmente sai algo verdadeiramente especial. «World’s are colliding!», gritava e esperneava George Costanza [Seinfeld, 1989-1998], cioso da sua independência e em pânico ao perceber que a noiva entrava no seu mundo de amigos. O futebol para mim é isto, um mundo de amigos, de trocas de memórias, de heróis tantas vezes de pés de barro e fragilidades evidentes. Heróis como Kurt Cobain foi naqueles anos de 91 a 94.     



Comentários

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motivo:
Ainda me lembro
2024-04-18 10h17m por anta-niogramaxosampa
Ainda me lembro, como se fosse hoje, na escola de São Mamede (Não me recordo se o nome ainda é o actual), que vi o meu amigo Nuno "Sucata", com um caderno acom colagens a dizer RIP KURT COBAIN
O Nuno, era o que chamávamos na altura, o metaleiro t-shirt preta de bandas de metal, jeans pretos rasgados e já fumava, para alguém com 12/13 anos, era algo digno de ser o maior.
Lembro-me de olhar para o caderno dele e ficar-me o escrito na memória e perguntava-me! Quem é o Kurt C...ler comentário completo »
Excelente texto.
2024-04-16 00h16m por PortimonDesdePiqueno
E que gosto foi lê-lo. Fez-me regressar aos meus obscuros anos "90". Conheci Kurt Cobain e os Nirvana, quase como toda a gente, pelo "Nevermind". Não recordo bem aonde o escutei pela primeira vez. Talvez no "Som da Frente" do Sérgio (o meu professor para o bom gosto musical). Talvez numa das longas noites no Meia Cave, ou no Aniki, ou no Pipa ou, possivelmente, no Mercedes. Sei que foi impactante e marcante. Mas a primeira vez que vi o Cobain a cantar foi num vídeo ranhoso da MTV. ...ler comentário completo »
Em relação a Kurt Cobain e aos '90
2024-04-15 19h19m por carlos_batuta
Não passara muito tempo. 1994, pois claro.
Escola Secundária Filipa de Vilhena.
Eleições para a associação de estudantes.
Cartazes, fotocopiados a preto e branco, estrategicamente colados a fita-cola nos azulejos dos patamares das escadas.

"Não faças como ele. Vota "L" "
A ideia foi do Zé.
Ele era o Kurt Cobain. Retratado no cartaz. Fotocopiado a preto e branco. Extremo mau-gosto.
A lista L ficou em último, como era objectivo.
Pedro Jorge, carrega no link
2024-04-15 15h49m por carlos_batuta
"1-0 em Vidal Pinheiro"

O Benfica perdeu e foi na Maia.
Pouco antes do 6-3 em Alvalade.
Agradecimento
hm por zerozero.pt
Muito obrigado. A notícia foi alterada com base no seu comentário

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