placardpt
Regras do jogo
Regras

Atraso ao guarda-redes: as medidas para combater o anti-jogo

Texto por Ricardo Miguel Gonçalves
l0
E0

Não há dúvida que o papel do guarda-redes evoluiu bastante ao longo dos anos. Para além de defender remates e comandar a área, cada vez mais qualidades são exigidas aos guardiões no futebol moderno. Evoluções táticas exigiram que o guarda-redes se tornasse necessário a sair dos postes rapidamente, varrendo bolas que caíam atrás da defesa, mas a principal alteração é provavelmente a necessidade de ser competente a jogar com os pés. Esta adaptação deve-se a vários fatores, mas o primeiro impulsionador foi uma alteração muito específica nas regras do jogo.

Até 1992, muito tempo antes de um guarda-redes valer dezenas de milhões de euros pela sua qualidade de passe antes de capacidade defensiva, as regras permitiam que um jogador passasse a bola ao seu guarda-redes e que este agarrasse a bola. Nenhuma regra impedia as equipas de desperdiçar quanto tempo quisessem, colocando o esférico na segurança das luvas do único membro da equipa que pode agarrar a bola. 

Durante décadas, a possibilidade de desperdiçar tempo desta forma nunca constituiu um problema, mas à medida que os jogos foram crescendo em importância, várias equipas viraram-se para a lacuna nas regras como uma forma de minimizar as chances de sairem derrotados, ou até de segurar uma vantagem. Para combater o anti-jogo, que começava a dominar o mundo do futebol, só houve uma coisa a fazer: mudar as regras.

Itália 90, um mês chato e monótono

A possibilidade de o guarda-redes guardar a bola após um passe foi progressivamente passando de um momento normal do jogo para algo abusado em certos contextos. O anti-jogo feito desta forma tornou-se comum, especialmente em jogos de grande importância, como finais, que passaram a ter menos golos nos anos que antecederam as novas regras. Exemplo disso são as duas finais europeias que o Benfica disputou nessa era, empatando 0x0 em 1988 com os holandeses do PSV antes de perder nos penaltis e, dois anos mais tarde, a derrota por 1x0 frente ao AC Milan. No mesmo ano, deu-se o início do pico desta tática, no Mundial de 90.

Chato e monótono é sem dúvida um exagero, ainda assim tem alguma justificação. O Campeonato do Mundo é uma das competições desportivas mais entusiasmantes do globo, e o facto de se realizar de quatro em quatro anos ajuda a aumentar a ânsia e criar expectativas que, na grande maioria das vezes, são cumpridas. Mas, embora os românticos do futebol prefiram recordar o Campeonato do Mundo de 1990 pelo pé de dança do veterano Roger Milla, a verdade é que não foi o torneio mais bonito.

Um dos grupos, constituído por Inglaterra, Holanda, República da Irlanda e Egipto, viu todos os seus jogos, menos um, a terminar em empate. Com destaque para o jogo entre a República da Irlanda e o Egipto, que terminou 0x0 e viu o guarda-redes irlandês Packie Bonner segurar a bola durante quase seis minutos.

Mas não foi só a República da Irlanda. Várias equipas decidiram usar essa mesma tática para assegurar os seus resultados, especialmente nos jogos a eliminar. Nem a própria final do Mundial, frente a 73 mil adeptos no Estádio Olímpico de Roma, viu um jogo honesto ou minimamente interessante. 

Itália 90 foi muito criticado pelo anti-jogo @Getty / Bongarts
A 8 de julho de 1990, uma seleção argentina que tinha marcado apenas cinco golos na totalidade do torneio chegou à final para defrontar a Alemanha Ocidental. O jogo seguiu o estilo do resto do Campeonato do Mundo e viu o empate 0x0 manter-se durante muito tempo, até ao minuto 85. O árbitro mexicano Edgardo Codesal assinalou uma grande penalidade contra a Argentina, que já estava reduzida a dez unidades depois da expulsão de Monzón aos 65'. Andreas Brehme converteu dos onze metros o único golo do jogo, e o que se seguiu foi o caroço da cereja no topo das migalhas de bolo que foi Mundial de 1990: Klaus Augenthaler recebeu a bola na esquerda e terá-se sentido intimidado pelos 9 argentinos à sua frente (já Dezotti também tinha sido expulso), pelo que se virou para trás e fez um passe de 40 metros para o guarda-redes Bodo Illgner, que agarrou a bola e não largou até soar o apito final.

A despedida do passe atrasado

Um Campeonato do Mundo com uma média de 2,2 golos por jogo chamou a atenção da FIFA, mas foi só dois anos depois que os esforços para erradicar o crescente anti-jogo culminaram numa solução proposta pelo International Football Association Board (IFAB), a organização responsável pelas regras do futebol. Para salvar a apetência do desporto enquanto espetáculo, nasceu a secção 2 da 12ª lei, que passou a proibir os guarda-redes de agarrar um passe deliberado com o pé de um colega de equipa. A lei passaria a entrar em vigor no final da temporada de 91/92, depois do Euro 1992 na Suécia, o que ainda permitiu uma despedida (in)digna à legalidade do atraso para o guarda-redes.

O Euro 1992 é conhecido pela surpreendente vitória da seleção da Dinamarca. A história incrível passa quase sempre pelos mesmos pontos: A seleção dinamarquesa nem devia ter estado no torneio, tendo entrado depois da Jugoslávia ter sido desqualificada pela guerra no seu país; passou a fase de grupos à frente da França e Inglaterra; derrotou a Holanda nos penaltis e depois venceu os alemães por 2x0 na final.

O que geralmente não entra na história da Dinamarca campeã da Europa são os meios utilizados frequentemente pelos escandinavos para garantir a vitória, especialmente na final. Aquilo que atualmente é considerado vergonhoso surgia ainda como algo normal, um aproveitamento das regras para chegar à vitória, ou conservá-la. 

Esta normalização do passe atrasado permitiu que, depois da Dinamarca chegar à vantagem cedo com um golo de John Jensen aos 18 minutos, Peter Schmeichel se tornasse numa das figuras centrais do jogo decisivo do Europeu. Um colega passava-lhe a bola e o guardião de 28 anos do Manchester United aguardava pela pressão do avançado adversário, só para agarrar a bola quando este estivesse perto. Isto foi acontecendo algumas vezes, e intensificou-se depois do 2x0 aos 78'. Já todos os espetadores sabiam que não haveria mais história no jogo, por mais que ainda houvesse tempo. E, à medida que o tempo ia passando, lá ia Jurgen Klinsmann obedientemente pressionar o guarda-redes, sem nunca reclamar, pois afinal de contas era perfeitamente legal... pela última vez.

Curva de aprendizagem

A alteração de regras que estavam tão enraizadas nos hábitos dos profissionais do futebol garantiu um início atribulado. Houve guarda-redes que se esqueciam que não podiam agarrar, houve outros que se lembravam mas não tinham capacidade de resolver com os pés, houve defesas que ficaram indecisos no momento de passar e perderam a bola. Houve de tudo um pouco, pelo menos até aos novos hábitos entrarem na cabeça dos jogadores.

Os primeiros jogos de futebol com as novas regras em vigor surgiram nos Jogos Olímpicos de 1992, e houve uma vítima quase imediata. Foi preciso menos de uma hora para que o guarda-redes italiano Francesco Antonioli agarrasse um passe, o que gerou um livre indireto para a equipa dos Estados Unidos da América e que Max Moore não desperdiçou. Mas não ficaria por aí.

Ainda no mesmo ano, deu-se o início da nova comercialização da Liga Inglesa, que passaria então a ser conhecida como Premier League, mas aquele que seria o começo da melhor liga do mundo teve uma entrave incial: os guarda-redes. Nos primeiros meses, parecia que todos os guarda-redes em Inglaterra tinham decidido fazer da competição um grande sketch de apanhados. Houve escorregadelas, quedas, auto-golos bizarros e outros episódios marcantes, como foi o caso do guardião do Sheffield United.

Simon Tracy protagonizou uma jogada épica em que lhe é feito um passe normalmente, mas quando Tracy recebe a bola é imediatamente pressionado pelo avançado adversário, e o guarda-redes entra em pânico. O jogador do Sheffield decide fintar o avançado, levando a bola para a zona lateral do campo, perto do canto, e corre com a bola em drible até ficar fora do campo. Parecendo que não, é aí que começam os seus problemas. O adversário só tinha que fazer o lançamento para rematar em direção a uma baliza vazia, então Tracy decidiu tentar tirar a bola ao pequeno apanha-bolas, sem sucesso. O estado caótico do guarda-redes culminou com uma entrada de carrinho ao jogador adversário que ia fazer o lançamento, e foi dessa forma que um passe atrasado acabou na expulsão do guardião, em cerca de 15 segundos.

Durante os primeiras épocas, foi possível ver algumas mudanças. A bola passava menos tempo nas mãos dos guarda-redes e mais nas bancadas, para onde eles rematavam quando se eram pressionados. Vários guarda-redes profissionais, por mais competentes que fossem na defesa de remates, acabaram por perder o seu lugar no futebol por não serem capazes de jogar com os pés, ou se o seu forte não fosse pontapés de primeira para longe, mas inevitavelmente a posição acabou por evoluir.

O novo futebol

Os anos passaram e a adaptação seguiu-se. Não só para os guarda-redes, mas para todos os jogadores que se tiveram que desenvolver fisicamente por haver menos tempo para descansar ou ganhar fôlego durante o jogo. Os defesas tiveram que se habituar a reconhecer o contexto em que envolvem o guarda-redes, os avançados passaram a pressionar para ganhar a bola e não para acelerar o processo de perda de tempo. Tudo mudou, e os anos iniciais recheados de erros e livres indiretos também passaram a ser uma ocasião rara, mas não necessariamente inexistente.

Nove anos após a implementação da regra, a edição de 2000/01 da Bundesliga foi decidida por um passe atrasado. No último dia do campeonato, o Schalke precisava de vencer e que o Bayern perdesse para ser campeão. Depois de estar a perder por duas vezes, o Schalke 04 venceu o seu jogo por 5x3, no mesmo momento em que souberam que o Hamburgo tinha marcado ao Bayern aos 90 minutos. A festa foi imediata, os adeptos invadiram o relvado, os jogadores celebraram, e já toda uma festa se desenrolava quando se aperceberam que o jogo não tinha terminado. Tomas Ujfalusi passou a Mathias Schober (guarda-redes que, curiosamente, estava emprestado pelo Schake 04 ao Hamburgo), que agarrou a bola, gerando um livre indireto para o Bayern Munchen já em período de descontos. Andersson não desperdiçou, e os bávaros foram campeões pela terceira vez consecutiva.

Também em Portugal houve casos de atraso. No início da temporada de 2007/08, o FC Porto recebeu e venceu o Sporting por 1x0, com o golo a surgir num lance semelhante ao que deu o título alemão sete anos antes. Anderson Polga passou para Vladimir Stojkovic, que agarrou a bola. Pedro Proença assinalou o livre indireto e Raúl Meireles fez o golo decisivo. Nessa época, o FC Porto de Jesualdo Ferreira foi campeão, o Sporting acabou na segunda posição.

A implementação da nova regra foi dura ao início. Muitos profissionais da modalidade tornaram-se obsoletos e viram a sua posição a precisar de uma lista nova de capacidades mas, com o passar do tempo, colheram-se os resultados. O anti-jogo foi um problema que ficou praticamente resolvido naqueles anos iniciais, e os guarda-redes tiveram uma curva de aprendizagem que gerou profissionais muito mais competentes.

Comentários

Gostaria de comentar? Basta registar-se!
motivo:
Um gajo hoje queixa-se do anti-jogo
2020-04-06 01h22m por vnlf
Nesses tempos devia ser algo desastroso.
LO
Anti-jogo
2020-04-05 14h36m por LolmacaEoS
Pelo menos houve coragem para fazer alguma coisa. Ainda aguardo pacientemente pela implementação do cronômetro, que já vem com décadas de atraso. A média de tempo de jogo útil é ridícula, no nosso campeonato nem chega aos 50 minutos e é surreal como ninguém parece estar preocupado com esta "neoplasia" do futebol moderno. Em qualquer outro desporto o cronômetro já existe há eternidades e funciona tudo bem, porquê esta demora no futebol? Quantas vezes nós, adeptos, nos enfurecemos com joga...ler comentário completo »
Tópicos Relacionados