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    Kiev

    Texto por João Pedro Silveira
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    Um porto no Dniepr, fundado por vikings

    Kiev é uma das maiores cidades da Europa. Cidade das cúpulas douradas, alma da Ucrânia. A sua história milenar está marcada pelas águas turvas do rio Dniepr. 

    Veio de ligação entre o Báltico a norte e Constantinopla (hoje Istambul) a sul, o rio que atravessa a cidade é hoje, tal como foi no passado, o coração e o gerador de vida da capital ucraniana. De norte e do sul, vieram as duas maiores influências de Kiev, por arrasto da Ucrânia e da Rússia e de todo o leste europeu.
     
    Sem Kiev e sem o Dniepr, uma ligação natural entre o norte escandinavo e o sul bizantino, não haveria a Rússia que conhecemos hoje. Pois tudo começou nas margens do rio que hoje banha Kiev, com a chegada dos varegues, uma tribo viking que descia os rios da Rússia e que se estabeleceu aqui, formando um entreposto comercial na rota que ligava o Báltico ao Mar Negro e daí a Constantinopla, a cabeça do Império Bizantino.
     
    Influências bizantinas
     
    Do sul, pelo mesmo Dniepr, chegaram os missionários que trouxeram o cristianismo de rito bizantino, ortodoxo, e com ele o alfabeto cirílico. O Príncipe Vladimiro foi batizado no ano de 988, e o Império Bizantino e o Principado de Rus estreitaram relações. Jovens foram enviados a Constantinopla para estudar nos mosteiros. Voltariam mais tarde, cristãos ortodoxos, formados na cultura grega. A evangelização e a língua lado a lado. À medida que a estepe se cristianizava, também se alfabetizava... 
     
    A religião, e Igreja Ortodoxa Russa em particular, desempenham um papel fundamental em Kiev e na Ucrânia.
    Foram eles que trouxeram as igrejas de cúpulas douradas e os ícones com imagens dos santos e de Cristo, foi com eles que a palavra de Deus e a língua que viria a ser a russa se espalharam pelas imensidões da estepe.
     
    Kiev foi a cabeça e capital do principado Rus, onde tudo começou, e que englobava muito do que é hoje a Ucrânia e a parte europeia da Rússia. Era já Kiev uma cidade esplendorosa, uma Roma do Leste, Moscovo ainda nem sequer existia...
     
    O Dniepr e as suas rotas comerciais não trouxeram só o progresso e a civilização. A barbárie também espreitava da estepe asiática e no século XIII, primeiro os mongóis e mais tarde os tártaros, invadiram, pilharam e destruíram Kiev e o seu principado. A Ucrânia afundou-se nas brumas da história, e seria palco de disputas, invasões e contínuas humilhações até ao século XX.
     
    Cúpulas douradas e jardins
     
    Hoje Kiev é novamente capital de um país independente, e os seus habitantes são cidadãos orgulhosos da sua história, do seu papel civilizador na história da Europa de Leste, e louvam loquazmente - mas com que razão! - a beleza apaixonante desta cidade, nunca poupando um adjetivo que seja.
     
    Entre as cúpulas douradas, tantas que se torna difícil de manter a conta, e a imensidão de verde dos parques e avenidas e praças arborizadas, a vista de Kiev, apesar do seu tamanho desmesurado e de uma população de quase três milhões de habitantes, é uma vista que aplaca com a sua calma e conforta com a sua beleza. Há algo de bucólico e quase rural na grande urbe da Ucrânia.
     
    Mosteiro de Kiev-Petchersk Lavra, ícone da cidade, Património Mundial da Unesco.
    Além das cúpulas douradas e do manto verde, há casas brancas, azuis e amarelas, telhados verdes, e claro, há sempre mais árvores, em mais jardins, que ladeiam o Rio que corre sereno para um mar tão distante.
     
    O Dniepr impressiona na largura, na distância que separa as duas margens, ainda mais impressiona se pensarmos que estamos a centenas de quilómetros da foz. Mas é assim a Ucrânia, e o Dniepr não podia ser diferente do país onde tudo é de uma proporção imensa, num país que nos ensina a redefinir a dimensão das coisas, de tal maneira é desmesurada a sua escala...
     
    Essa grandeza, quase desumana, apresenta-se ao visitante nas avenidas que parecem não ter fim, nos parques com áleas que se estendem para além da vista, nas estações de metro com escadas rolantes que prometem ser infinitas e nos átrios com candeeiros que pesam mais que o mundo... Kiev mistura essa escala gigantesca, com pequenas passagens entre edifícios, subterrâneas e quase clandestinas, que no inverno se tornam pequenos shoppings. Os detalhes como pequenas joias, encontram-se nos nichos perdidos em prédios antigos, frisos que ornam janelas e portas, pequenas estátuas nos jardins e fontes, frescos seculares numa igreja ortodoxa. O pequeno, o delicado, resguardado no meio da imensidão. Eis os segredos bem guardados para quem visita Kiev.
     
    As Colinas e as Igrejas de Santa Sofia e São Miguel
     
    Tal como Lisboa ou Roma e também Lviv, Kiev tem sete colinas, um verdadeiro acidente na monumentalmente plana Ucrânia. E é precisamente no espaço entre duas das suas colinas que se encontra a Kreschatik, a mais famosa avenida da cidade, uma «Boulevard à francesa», com jardins arborizados de ambos os lados, entalada entre a colina que acompanha o rio e a colina por onde se estende o centro histórico.
     
    Foi aqui que Kiev começou, junto à colina onde se erguem as Catedrais de Santa Sofia e de São Miguel das Cúpulas Douradas. Antes passamos pela Porta Dourada, uma das antigas entradas da cidade, que nos anuncia que entramos pela cidade medieval na história de Kiev.
     
    Porta Dourada, a entrada da cidade histórica.
    Neste bairro da cidade, Shevchenko, como o grande craque da seleção ucraniana, encontram-se as três maiores igrejas de Kiev: São Miguel, Santa Sofia e Santo André. 
     
    São Miguel é azul clara, com as suas cúpulas douradas brilhantes, criando a ilusão que ao sol, olhamos para a bandeira da Ucrânia. Do outro lado da praça, enorme, está Santa Sofia [Sobor Sviatoyi Sofiyi], com a sua cúpula brilhante, a coroar um conjunto de doze torres mais pequenas, de telhados verdes e pequenas cúpulas douradas, Jesus Cristo e os doze apóstolos…
     
    Santa Sofia, construída à imagem da homónima catedral de Constantinopla, marcou o ponto de partida para a construção de igrejas no leste, aos poucos emancipando-se do estilo bizantino, virando a página, e como que se de um corpo vivo se tratasse, a arquitetura sacra a leste, organicamente introduziu as marcas da cultura e do folclore dos povos eslavos.
     
    Santo André e Podil
     
    Por trás de São Miguel fica a descida de Santo André, uma rua íngreme que liga a parte alta a Podil, um bairro pitoresco junto ao rio. Repleta de galerias de arte e com um pequeno mercado de rua onde pode comprar memorabilia dos tempos da União Soviética, Santo André é de visita obrigatória, se bem que ao lado, a existência de um funicular que liga São Miguel a Podil, tem levado muitos turistas a perderem a experiência de descer Santo André, e de conhecerem a igreja barroca que deu nome à artéria, projeto do italiano Bartolomeo Rastrelli, que iniciou a construção em 1744.
     
    Matrioskas à venda no mercado de rua de Andriivskiy Uzviz.
    Em Podil sente-se o pulsar do rio. Os pequenos embarcadouros, os cantares dos pássaros que vivem nas margens, o bulício das pequenas compras e mercadorias que vão abastecendo o comércio local. Os cafés pitorescos, as casas baixas, o aroma de um borscht devidamente condimentado, ou o cheiro de uns Varenyky ainda fumegantes invadem as ruas, e o visitante sente-se invadido pela vontade de se sentar e beber um chá quente e pedir um daqueles pratos, com um perfume exótico, que ao mesmo tempo oferece uma ideia de conforto e um sabor tão estranhamente familiar…
     
    Petchersk Lavra
     
    Acompanhando o rio, junto a um manto verde que se estende pelo Parque envolvente do Valeriy Lobanovskiy, o antigo estádio do Dynamo Kiev, seguimos em direção ao Mosteiro de Kiev-Petchersk Lavra, ícone da cidade, Património Mundial da Unesco, santuário de culto da Igreja Ortodoxa Russa, fundado em 1051 por Santo António de Kiev, um asceta grego que se radicou nas grutas que existiam nesta parte da cidade. 
     
    O enorme complexo do Mosteiro, guarda as grutas onde os monges viveram e onde ainda se podem encontrar as suas múmias, e diversas relíquias. A visita a Lavra pede tempo para se disfrutar da Catedral do Dormitium, da Igreja do Refeitorio, da Torre Barroca e das igrejas que dão acesso às grutas.
     
    Mãe Pátria e Berehynia
     
    Visitadas a Kiev central, a glamorosa, a histórica e a religiosa, resta apenas conhecer a Kiev soviética, e nada melhor do que a colossal e opressiva estátua da Mãe Pátria, que com os seus 102 metros de altura, choca mesmo depois do impacto inicial. Dedicada às vítimas da Grande Guerra Patriótica, como é conhecida por estas bandas a II Guerra Mundial, a Mãe Pátria simboliza a liberdade e a vitória que só foi conseguida após um imenso sofrimento.
     
    Mãe Pátria, do alto dos 102 metros vigia a cidade.
    Uma chama arde continuamente, como é costume em monumentos e na estatuária soviética, para lembrar todos aqueles que pereceram a libertar a pátria dos exércitos invasores da Alemanha Nazi. Na sua base encontra-se um museu que evoca o conflito e a luta contra o nazi-fascismo, as suas vítimas e heróis, perto pode ainda encontrar um museu sobre a guerra do Afeganistão. A guerra que preconizou o fim da U.R.S.S....
     
    A cerca de quatro quilómetros e meio fica a Maidan Nezalezhnosti, literalmente a Praça da Independência, onde em cima de uma coluna está Berehynia, a Deusa da Terra eslava, que guarda do alto aquele que é o santuário da liberdade ucraniana, pois foi nesta Praça que em outubro de 2004, os apoiantes de Yushchenko e da Revolução Laranja aguentaram firmemente dias e noites ao frio, exigindo a democracia e a liberdade no país.
     
    A nova Ucrânia
     
    Continuamente invadida, arrasada por mongóis, tártaros, alemães, russos, Kiev foi a alma do nacionalismo ucraniano desde meados do século XIX. Nas suas ruas cruzam-se os restos de um Império derrubado e a modernidade de um século XXI. A Ucrânia ainda só agora fez 20 anos como estado independente, mas a sua alma tem milénios. Na sua capital, onde o inglês é uma língua estranha, o cirílico impera e o russo é tanto ou mais falado que o ucraniano.
     
    Maidan Nezalezhnosti, a Praça da Independência, palco dos últimos grandes momentos da história do país.
    Os magnatas do petróleo e do gás, os senhores do capital, os mafiosos, os ricos a quem não se conhece a proveniência emprestam um colorido kitsch à cidade, com os seus carros potentes e de vidros fumados que ultrapassam sem considerações velhas carripanas herdadas do tempo da U.R.S.S.
     
    Assim é Kiev, jovem e velha, histórica, elegante ora de extremo mau gosto, russa e ucraniana ao mesmo tempo, europeia e cosmopolita, ultrapassada e futurista.

    Comentários

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    RR
    Parabéns ao zerozero
    2012-06-12 22h15m por RRC99
    Parabéns ao zerozero por um artigo muito bem feito.
    Nunca pensei encontrar no zerozero(ou noutro site de desporto qualquer) uma narração da história de uma cidade tão bem feita. 5 estrelas.
    Parabens
    2012-06-09 12h22m por lopesmendes
    Faço minhas as palavras do comentador anterior. Numa escala de 0 a 20. . . dou 21. Aliás considero o ZeroZero um dos melhores sites de desporto e a nivel geral. Parabens.
    NUMA ESCALA DE 0 A 20. . . DAVA 21. . .
    2012-06-08 06h24m por LEAOSELVAGEM
    FANTÁSTICO!

    Nunca pensei encontrar num site virado exclusivamente para o futebol uma narração histórica de tão grande qualidade

    Parabéns aos responsáveis por semelhante artigo bem como a sua inclusão no Euro2012
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