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    Caos político afetou o país e também o desporto

    Sudão: portugueses lembram «país sem paz» e pertences perdidos

    2023/05/09 10:37
    E2

    «É muito difícil arranjar água e não há comida suficiente para todos. Além disso, não temos eletricidade. Não temos ligação à Internet e não conseguimos fazer ou receber chamadas. Não conseguimos fazer nada.»

    Guerra. Esse infame conflito que marca gerações e territórios. Em qualquer vertente e independentemente da duração, será sempre uma tragédia monumental. Desta vez, no Sudão.

    Com o Mar Vermelho a circundar uma das costas do país, o Sudão está localizado norte do continente africano. Marcado por décadas de guerra, uma nova «estalou» nas últimas semanas. Em pouco mais de meros dias, foram contabilizados mais de 500 civis mortos no território. Tudo isto se desenrolou porque as negociações para a integração dos paramilitares nas forças armadas, no âmbito de um processo de transição política, fracassaram.

    Bashir, que esteve no poder durante mais de três décadas, abandonou o cargo mais alto no Governo do país, depois de um insurreição popular. As Forças de Liberdade e de Mudança não tiveram dúvidas em alertar o desfecho infeliz de toda a situação. «Esta guerra, que foi inflamada pelo regime deposto, vai levar o país ao colapso.»

    Tudo rebentou a 15 de abril, na capital do Sudão - Cartum. Na Sudani Premier League - primeira divisão de futebol do país -, os jogos foram imediatamente adiados e, de forma óbvia, não existe previsão de retorno da competição.

    «Não havia muita coisa bonita para apreciar devido à falta de paz constante»

    Os portugueses residentes no Sudão foram prontamente retirados do país, sem qualquer hesitação, pela preocupação no que concerne ao medo e ao perigo. No entanto, o zerozero partiu em busca de pessoas que viveram de perto este flagelo, ainda antes de tudo rebentar.

    Ricardo Formosinho e João Mota são dois dos treinadores que comandaram a equipa principal do Al-Hilal Omdurman nos últimos anos, entre a queda do governo em 2019 e o golpe de estado de 2021 no país.

    O primeiro, antigo treinador-adjunto de José Mourinho no Tottenham e no Manchester United, esteve no Sudão durante cerca de 10 meses e diz ter sido muito feliz - falando do que concerne ao futebol.

    «O tempo que passei no Sudão, a nível profissional, está guardado no meu álbum de boas recordações. Conseguimos ajudar a equipa para que pudesse ser campeã, porque já há quatro anos que não ganhava. Chegámos à final da Taça e deixámos a equipa também apurada para a fase de grupos da Champions League de África. Só posso ter boas recordações profissionais.»

    João Mota não tem um discurso diferente. «A experiência foi muito gratificante. Tive o privilégio de treinar excelentes jogadores num um país que, apesar de muita pobreza, tem gente maravilhosa.»

    No que toca à parte social, ambos os treinadores têm um discurso similar.

    qTivemos de vir embora mais cedo. Sentimos que alguma coisa andava no ar. Qualquer dia, alguma coisa podia acontecer.
    Ricardo Formosinho

    «Nós vivíamos bem e fomos muito bem recebidos. As pessoas muito simpáticas, mas notávamos que havia duas classes sociais bem distintas - uma de gente com muito dinheiro e outra com gente muito pobre. Independentemente do tempo em que estivemos lá - foram ainda oito ou dez meses - nós tínhamos um contrato de 16 meses, mas tivemos de ir embora mais cedo. Sentimos que alguma coisa andava no ar. Qualquer dia, alguma coisa podia acontecer», afirmou Ricardo Formosinho.

    «Muitas vezes, chegávamos tarde devido aos manifestantes nas estradas, que queimavam pneus e atiravam pedras. Existiam carros armados do exército por todo lado. Poucas vezes saía à rua para algo que não fosse para treinar. Não havia muita coisa bonita para apreciar devido à falta de paz constante. Sentíamos que sempre poderia acontecer algo mau», reiterou João Mota.

    O «exílio» forçado: «Não nos deixaram regressar»

    Ambos referiram: já se sentia que algo ia despoletar a qualquer momento. Não sabiam quando. Não sabiam exatamente onde. Mas sabiam que ia acontecer. 

    Ricardo Formosinho nas celebrações do Al Hilal @Al Hilal SC

    Ricardo Formosinho revelou o momento em que percebeu que tudo estava prestes a rebentar. «Nós fomos jogar para a Champions League e fizemos do Egipto da nossa casa porque a FIFA não nos deixou jogar no Sudão. Tivemos a felicidade de vencer uma equipa nigeriana e passámos à fase de grupos. No entanto, quando nos preparávamos para reentrar no Sudão, não nos deixavam entrar. Aí, fiquei preocupado. Não nos deixaram regressar. Os aeroportos estavam fechados e já não voltámos. Ainda hoje, tenho pertences meus - desde roupa a material de trabalho – no Sudão

    Em conjunto com o seu staff, Ricardo Formosinho decidiu não voltar para o país e não arriscar porque tudo podia piorar. Na situação de João Mota, o cenário não foi, de todo, diferente.

    «Quando aconteceu o Golpe de Estado em 2021, nós estávamos no Egito e já não podemos regressar ao Sudão para ir buscar as nossas coisas. Fomos diretos para casa. Assistimos a tudo pelas televisões e redes sociais. Foi uma grande instabilidade, mas nós fomos sempre privilegiados», referiu.

    Treinar no Sudão: apesar de tudo, um trabalho de orgulho

    As condições de trabalho no país não eram as melhores. Não só pelas condições sociais, mas, também, no que toca às infraestruturas. 

    O conceito de futebol no Sudão, para quem o pratica, não parecia ter o mesmo significado que alberga noutras partes do mundo.

    «Eles começam a ser jogadores só aos 25 ou 26 anos e, em Portugal, com essa idade estão no meio da linha. O desafio foi fazê-los acreditar que com 18 ou 19 anos podem ser bons jogadores e jogar numa seleção. Foi um desafio interno. Eles ganhavam um jogo ou dois, mas podiam estar ali dois ou três jogos sem ganhar que não havia problema», afirmou Ricardo Formosinho.

    Um jogo de futebol, para eles, não tem uma «rotina». Não há hábito de treino ou de titularidade.  «Eles jogavam com uma equipa no domingo e, no jogo seguinte, mudavam tudo. Jogavam seis ou sete, e, depois, saíam seis ou sete. Eles não entendiam o que eram as rotinas do jogo. ‘Já que joguei hoje, para a semana pode jogar o meu amigo’. Eu dizia sempre: 'não, tu jogaste hoje e, para a semana, se estiveres bem, tens de jogar novamente porque eu quero é que a equipa rotinada.» 

    João Mota durante uma sessão de treino do Al Hilal @Al Hilal SC

    No fundo, a importância dada ao campeonato e ao jogo em si é como se fosse apenas algo entre amigos, em que todos entram.

    Mesmo assim, a ressalva é feita. Apesar dessa mentalidade, Ricardo Formosinho salienta que o jogador sudanês é a «ginga do africano».

    «Nós detetámos e conseguimos perceberam o que eles precisavam. Tivemos a felicidade de conseguir fazê-los acreditar que o caminho era esse. Eles não eram muito intensos. Duravam pouco tempo em campo. Com o nosso trabalhado, conseguimos sensibilizá-los para a intensidade que, sem ela, não era possível chegar onde chegámos. Eles eram um pouquinho desorganizados, mas fomos felizes.»

    Para além do que toca aos jogadores, o restante também é fulcral. «As infraestruturas são abaixo de básicas. O problema do Sudão é que tem alguns ricos, mas esses são muito ricos, e o restante é muito pobre. Existe muita falta de saneamento básico, canalizações, falta muito a luz e o calor é excessivo», revelou João Mota.

    «Alegria do povo» adiada: «O mundo está faminto de paz e procura-a no meio da guerra»

    No meio da guerra, o futebol é paz. O futebol é o que une as pessoas por uma única paixão, ainda que com clubes distintos. O amor é o mesmo. 

    «O futebol, em toda a parte, mas especialmente em África, é a alegria do povo. A alegria do povo do Sudão é só o futebol e pouco mais. Por isto é que existem 100 mil adeptos. Ao estádio, vão 30, 40 mil. Eles têm muitos adeptos porque a alegria deles é o jogo. É o futebol», salientou Ricardo Formosinho.

    João Mota confirma. «A nossa equipa foi várias vezes a hospitais, orfanatos e sempre tentámos ser uma lufada de ar fresco para muita gente. O futebol mexe com emoções e nós devemos dar o exemplo, principalmente nestes contextos.»

    O mal acaba por ser de quem é obrigado a ficar e a assistir tudo o que se passa. A preocupação é constante. Ricardo Formosinho retrata isso mesmo.

    «O nosso tradutor da altura, um homem local, disse-me ‘eu não saio de casa com os meus filhose está, há duas semanas, a ouvir os tiros em casa. Isso deixou-me bastante preocupado. Nos próximos três ou quatro anos vai ser muito difícil algum ocidental ir para lá trabalhar.»

    A frase mais marcante é de João Mota. Por muita que seja a paixão «unânime» pelo jogo, não irá ser o futebol a criar paz.

    «Eu acredito que onde há corrupção e desigualdade nunca haverá nada, nem ninguém, que acabe com isso. O futebol arrasta multidões e pode até ajudar milhares de pessoas, mas nunca vai acabar com guerras. Pode e deve promover a paz, mas isso deveria ser feito por cada pessoa, individualmente. O mundo está faminto de paz e procura-a no meio da guerra.»

    A alegria e o amor pelo futebol. De momento, está tudo adiado no Sudão, enquanto se procura incessantemente a paz, no meio da guerra. @Al Hilal SC

    Comentários

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    motivo:
    Sudão
    2023-05-09 11h23m por moumu
    È preciso coragem para 2 treinadores portugueses se meterem lá numas das zonas mais perigosas do mundo. Boa reportagem Zerozero!

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