Miguel Cardoso: da distrital ao «sonho tornado realidade» no Camp Nou

O futebol é imprevisível. Que o diga Miguel Cardoso. Num suspiro, está a atuar para escassos espectadores no Campeonato Distrital, e noutro, pisa o relvado de um dos maiores palcos do desporto-rei: o Camp Nou, sob os holofotes do puro desconhecimento. Múltiplas paragens em estações estrangeiras, num verdadeiro interrail desportivo, cujo próximo destino é sempre desconhecido à priori. O atual paradeiro é Kayseri, na Turquia, país onde tem causado furor, fruto da sua apurada capacidade técnica.

PARTE I

zerozero - Como é que surgiu o bichinho pelo futebol?

Miguel Cardoso - Desde que me lembro, sempre tive esse bichinho. O meu irmão jogava futebol e fui obrigado, desde pequenino, a vê-lo jogar. Foi desde essa altura que o meu desejo era sempre jogar futebol a toda a hora, todos os dias.

zz - Como é que apareceu, posteriormente, a oportunidade de ingressar nas camadas jovens do Benfica? Foi algo repentino?

MC - Eu comecei nas escolinhas do Rio de Mouro. Tive lá, salvo erro, um ano, só que jogava no escalão mais acima. Fui então recrutado pelo Benfica e tive lá uma série de anos, onde fiz praticamente a minha formação quase toda.

@Global Imagens / Tony Dias

zz - Sentiu muita diferença no que toca ao paradigma competitivo entre as duas equipas? Da transição para uma realidade mais exigente?

MC - Claro que sim. Na altura, quando somos miúdos, não temos tanta essa noção. Nós queremos é divertirmo-nos e, como tal, não pensamos tanto na vertente do treino. O Benfica, mesmo jogando em tenra idade, notava-se claramente que era um patamar mais acima, mais profissional. O Benfica ajuda muito as crianças a crescer, passando muitos valores, não só a nível desportivo, como também humano.

@João Matos

zz - Bernardo Silva, Ricardo Horta, André Horta, Rony Lopes e João Cancelo são alguns jogadores com quem conviveu nos encarnados. Quais eram aqueles que já se mostravam diferenciados em tão tenra idade?

MC - Sem dúvida, o Bernardo [Silva]. Desde que entrei no Benfica, ele sempre mostrou ser diferente dos outros todos. Ele não mudou a sua forma de jogar desde que eu o conheci. Claro que ele evolui muito, mas aquele pé esquerdo nunca enganou, bem como a inteligência dentro de campo. Mesmo quando às vezes não era opção, já nas idades mais avançadas, ele mostrava aptidões fora do comum. 

zz - A sua estreia enquanto profissional acaba por ocorrer no Real SC, no quarto escalão nacional. No entanto, no primeiro ano acabou por não marcar nenhum golo. Sentiu dificuldades nesta transição?

MC - É uma história interessante. Eu jogava nos Juniores do Real SC, mas grande parte da época ainda fiz nos Seniores. Depois, acabei por dar continuidade na primeira metade da temporada seguinte. Claro que se nota uma diferença a nível de capacidade física ou relativamente àquelas matreirices. Acabei por estar pouco tempo, porque depois emigrei para Espanha, logo, tive muito pouco tempo para me adaptar a esta nova realidade.

zz - Após um excelente registo na segunda temporada, rumou ao Deportivo. Como é que esta chance de pulo na carreira surgiu?

MC - Foi algo repentino. Aconteceu num espaço de quatro, cinco dias. Recebi o convite e obviamente não pensei duas vezes. Apesar de ser jovem, ir para um clube como o Deportivo, ainda que para a segunda equipa, foi um passo gigante e muito bem dado, na minha opinião. 

zz - Deu para crescer enquanto jogador?

MC - Sem dúvida. Foi a primeira vez que saí de casa, porque eu fiz a minha formação toda em Lisboa. Os primeiros meses em que tive que viver sozinho foi, naturalmente, uma adaptação difícil, principalmente num país em que, apesar de ser parecido ao nosso, possui algumas diferenças. Contudo, foi positivo. Acabei por fazer uma excelente temporada na equipa B e, consequentemente, subir à primeira divisão.

zz - Depois de boas exibições na equipa B, acabou por se estrear pela turma principal num dos maiores estádios da modalidade: o Camp Nou. Sonho concretizado?

@Getty /

MC - Foi o momento mais marcante da minha vida desportiva. Um sonho tornado realidade, não só pelo facto de me ter estreado na primeira divisão espanhola, mas também por ter sido num estádio como o Camp Nou. Assisti para um golo e ainda conseguimos chegar ao empate, algo que é sempre bom face às expectáveis dificuldades. É uma noite que vou levar para sempre. 

zz - Consegue relatar esse golo?

MC - Lembro-me de receber a bola, vir para dentro, da esquerda para o centro, e vejo a desmarcação do Lucas Pérez entre os centrais. Ele fica isolado e faz o golo.

zz - Lucas Pérez, um excelentíssimo jogador...

MC - O Lucas Pérez dispensa apresentações pela carreira que fez. Agora está de regresso a casa e, ainda que o Deportivo esteja no terceiro escalão, está num clube com muita história. Ele voltou com o objetivo de puxar novamente o clube aos patamares onde merece estar. 

zz - Algum momento em particular que guarde desse embate tão especial, recheado de estrelas?

@Getty /

MC - Só o facto de estar no banco e ver craques como o Iniesta, o Messi, bem como todos os outros jogadores do FC Barcelona, foi uma sensação incrível. O jogador que mais me impressionou foi o Iniesta. A qualidade que ele tinha, a sua serenidade sobre pressão... estava muito acima dos outros. Tal como o Messi, mas esse já esperava grandes coisas. Ter a oportunidade de apreciar a qualidade daqueles jogadores já foi muito especial. Acrescentando a isso, o facto de ter entrado e ter contribuído para o bom resultado tornou o momento melhor ainda.