Ainda lhe faltarão uns vistos, mas é claramente candidato a globetrotter português de grande expressão. Ricardo Sá Pinto já andou por Grécia e Sérvia, por Bélgica e Polónia, também por Brasil, Arábia Saudita e Irão. De vez em quando, volta a Portugal, mas o instinto aventureiro logo o leva para nova exótica experiência. A atual tem muito que se lhe diga e ele disse-o, em conversa com o zerozero.
Não é difícil puxar pela cabeça e recordar os tempos de Liga dos Campeões. Nicosia foi paragem habitual de boas equipas europeias e a própria Europa teve de prestar especial atenção a uma notável campanha de 2011/12, que só acabou nos quartos de final contra o Real Madrid, de Mourinho, Cristiano e companhia.
Os tempos são bem diferentes. Em tudo. O rótulo de mais titulado não lho podem tirar (28 vezes campeão, mais sete que o Omonia - eis a lista), só que a glória escapou nos últimos três anos e os problemas financeiros chegaram. A equipa até começou a época nas provas da UEFA, se bem que a ambição tem de ser bastante comedida. Há salários em atraso, há um cinto orçamental e há a sensação de que outros estão mais capacitados para o título. Tudo é desfavorável. Menos o feeling de Sá Pinto.
Atendeu-nos o telefonema com grande amabilidade, durante uma refeição que foi interrompida com a esposa - apresentamos as desculpas por esta via - e disse-nos como estava a lidar com tudo isto. Mais: o contexto acontece depois de idêntico problema no Irão, mais prolongado no tempo (oito meses por receber) e que já está na FIFA.
Ainda assim, Ricardo quis foi falar de futebol. Segue-se a conversa...
zerozero: Diga-me o Ricardo se está a ser uma aventura menos agressiva que as anteriores, com Irão, Turquia...
Ricardo Sá Pinto: [Risos] Na Turquia correu muito bem, apesar de ser uma cultura diferente. No Irão, desportivamente também correu bem, ganhámos a supertaça, fomos à final da taça e perdemos injustamente, lutámos pelo campeonato até ao fim. O que não correu foi a questão financeira, eu e a minha equipa técnica estivemos oito meses sem receber, o que é demasiado.
zz: Já foi solucionado?
RSP: Não, não, é um processo que vai ser moroso e que vai ser tratado na FIFA. Em relação a este ano, as coisas estão a correr muito bem. Começámos muito bem também na Europa, passámos duas eliminatórias e, com um bocadinho de sorte, talvez tivéssemos passado também o Gent, mas é uma equipa que está num nível superior à nossa, com um budget diferente. Foi um trajeto bom. Em relação à liga, estamos em primeiro lugar, mas é um campeonato muito competitivo, com seis, sete equipas a lutar pelo título. É importante ganhar, é importante continuar lá em cima, mas ainda nem sequer chegámos a meio. A época está a ser muito positiva.
zz: Pedem-lhe o título? E o próprio Ricardo incute isso?
RSP: Claro. Sempre gostei de treinar equipas com objetivos claros, isso é algo que tem a ver com a minha forma de estar como treinador, nomeadamente em equipas que lutem por títulos e por competições europeias. No Belenenses, por exemplo, conseguimos ir à fase de grupos de uma competição europeia, o que foi extraordinário, com uma equipa 100 por cento portuguesa. Este ano, apesar da competitividade e de ser apenas o sexto ou sétimo orçamento mais alto, pois financeiramente o clube não está num bom momento e com alguns problemas, diariamente incuto aos jogadores isso. Eles próprios têm essa mentalidade e acreditamos que podemos ganhar campeonato e taça.
zz: O Chipre já foi um destino muito experimentado pelos portugueses, atualmente parece que isso tem acontecido menos, até por causa de algumas histórias de promessas falhadas, desilusões depois de ilusões. Que realidade encontrou no Chipre?
RSP: Em termos de clube, é o maior do Chipre. Historicamente, é o mais titulado, tem 28 títulos nacionais. Quanto a massa adepta, provavelmente temos os melhores adeptos do Chipre, que enchem o estádio em todos os grandes jogos. Em termos de estrutura de trabalho, também temos boas condições, dois campos, zona de recuperação, bom departamento médico. A parte financeira é a única contrariedade, temos algumas situações em atraso, que infelizmente existem, não só comigo, como equipa técnica e jogadores. É algo que existe. O presidente está a fazer tudo o que pode para conseguir angariar sponsors e pessoas que possam ajudar o clube e esperamos que possa regularizar a situação o mais rápido possível. É uma realidade e temos de saber viver com ela.
zz: Usa essa contrariedade como fator motivacional para mexer na cabeça dos jogadores?
RSP: Tem de ser assim. Já há muitos anos que não conseguíamos cinco vitórias seguidas e fizemo-lo no início. Há muitos anos que não conseguíamos seis vitórias seguidas e conseguimos agora. Já é a segunda série muito boa. Temos de ser criativos, arranjar formas de os jogadores se abstraírem desta situação e focarem-se no jogo e nos resultados, porque só isso nos vai dar alento para enfrentar esta situação. Qualquer pessoa que tenha salários em atraso não estará confortável. É muito difícil motivar pessoas nesta situação. O que costumo dizer aos jogadores é que durante o período do treino ou do jogo ninguém se lembra do dinheiro, ninguém se lembra que nos devem. Antes e depois é que sim, sobretudo quem precisa disso para resolver questões imediatas. Mexe no subconsciente dos jogadores, mas eles têm sido extraordinários. Já há algum tempo que isto se arrasta, mas eles continuam, e só desta forma temos alguma alegria.
zz: Quando voltou para Portugal, para o Moreirense, perguntámos-lhe quantas saudades tinha do futebol português. E agora fazemos-lhe a mesma pergunta...
RSP: Do meu futebol e do meu país tenho saudades todos os dias. Gosto muito do nosso futebol, que é positivo, com jogadores jovens e talentosos - e cada vez nascem mais. Não somos um país competitivo, financeiramente, e por isso temos muitos jogadores lá fora, somos um país vendedor a um grande nível. A Liga podia ser ainda mais competitiva com um pouco mais de capacidade para os manter. A vida não me permitiu continuar em Portugal, mas adoro o país e o nosso futebol e estarei sempre atento a um projeto em Portugal, desde que me preencha nos meus objetivos enquanto treinador.
zz: Coloca uma data máxima para voltar?
RSP: Não, não tenho. Sabe que, no futebol, não podemos fazer muitos projetos a longo prazo. Contratos de três ou quatro anos não significam nada, hoje em dia, porque a lei protege os clubes, na medida em que, se estiverem insatisfeitos, nós vamos para o desemprego e eles nem são obrigados a pagar, depois arranjamos clube e o dinheiro que seria nosso deixa de ser. Enfim, há algumas leis que mudaram um bocadinho. Por isso, projetos é difícil de ter. Sou um treinador que gostava de ter projetos, lutar por eles, mas não tenho visto projetos sólidos. Já fui proposto para renovar e não renovei, em alguns casos, por variadíssimas razões. Por exemplo, este projeto do APOEL eu adorava que fosse para mais anos, mas é preciso que se conjuguem várias situações. Espero que, no futuro, possa haver essa estabilidade, porque é muito cansativo para um treinador refazer todos os anos. Estar todos os anos num país diferente, num clube diferente, numa cultura diferente, com novas realidades.
zz: Sim, o Ricardo é cada vez mais um globetrotter.
RSP: [Risos] Pois sou. Tenho esta capacidade de me adaptar, mas ao mesmo tempo é cansativo, percebe? Começa a cansar. Também dá gozo ter um projeto para dois ou três anos e construir uma equipa, uma identidade, uma forma de estar.