O futebol chegou à Rússia, como em outras partes do mundo, pelas mãos - passe a contradição - dos ingleses. O primeiro registo de uma partida de futebol em solo russo, aponta a Ilha Vasilievsky em São Petersburgo como o palco desse primeiro encontro, entre uma equipa formada por ingleses, batizada de «Ostrov» e uma equipa composta só por jogadores russos, denominada de «Petrograd».
Do resultado do jogo não há memória, mas nos anos seguintes o futebol ganhou raízes na capital dos czares e pela cidade foram surgindo pequenos grupos de jovens apostados em jogar futebol que foram formando as suas equipas. Por norma, estas equipas estavam ligadas aos ingleses ou às grandes indústrias e ao porto. Tal como em Inglaterra, onde o jogo nascera, também na Rússia coube à classe operária o papel pioneiro de abraçar o novo jogo, tornando-o seu.
O epicentro do furacão
A cidade e o país viviam períodos conturbados. Desde o fim do século XIX que o Império atravessava uma crise que parecia não ter fim. Derrotado pelo Japão na humilhante Guerra Russo-Japonesa, o governo do Czar começava a ser abertamente criticado, inclusive por aqueles que antes o haviam apoiado.
O Zenit é um dos clubes com mais adeptos na Rússia. O Petrovsky em São Petersburgo há décadas que é o seu «santuário».
A Revolução de 1905, com o famoso «Domingo Sangrento», em que entre 200 a 1000 homens e mulheres desarmados e liderados por um padre, com ligações à Okhrana (1) pereceram em frente do Palácio de Inverno enquanto pediam ao czar Nicolau II por melhores condições de vida, depois da guarda abrir fogo.
A contestação espalhou-se, chegando inclusive à marinha real, com a famosa revolta no Couraçado Potemkin. Acossado por diversos lados, o autocrático Czar abriu temporariamente mão do seu poder e aceitou a criação da Duma, aliviando também a repressão policial da temida Okhrana conseguindo assim que a crise acalmasse.
Mas passado nove anos a Rússia entrou na Primeira Guerra Mundial, lutando ao lado da França e da Grã-Bretanha, contra a Alemanha e os seus aliados, tentando recuperar a grandeza militar perdida na campanha oriental de 1904-05.
Entretanto, São Petersburgo mudou de nome para Petrogrado, para russificar o nome, que até aí soava muito germanico. Os desastres militares na frente russa, as baixas, a fome generalizada conduziram a nova revolução em Fevereiro de 1917, o Czar Nicolau II abdicou e nasceu a República.
Até Outubro, Petrogrado foi palco de manifestações, motins, contestação. A nova República acabou por ser derrubada pelos Bolcheviques liderados por Vladimir Ilyitch Uliánov, mais conhecido por Lenine. Seguiu-se a Paz com os alemães e a Guerra Civil entre «vermelhos» e «branco» donde emergiram vitoriosos os bolcheviques que proclamaram o primeiro estado socialista do mundo: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
A dança dos nomes
A 26 de janeiro de 1924, quatro dias depois da morte de Lenine, a cidade mudava de nome para Leninegrado, para honrar o líder da revolução de 1917.
Em 1925 nascia o Stalinets, um dos antepassados do clube.
Num país em constante mutação, numa cidade que era o epicentro das revoltas e contra-revoluções, o
Zenit também viveu uma história atribulada.
As suas origens remontam ao começo do século e aos diversos clubes que surgiam na cidade, mas que rapidamente davam lugar a outros.
Murzinka, um clube fundado em 1914, o ano em que a Guerra começou, é o mais velho predecessor do
Zenit de que se encontra registo. O clube atuava no Estádio Obukhovsky, pertença da grande fábrica com o mesmo nome, entre 1914 e 1924, ano em que em honra da vitoriosa revolução, o Murzinka passou a ser conhecido por
Bolshevik, nome porque ficou também a ser conhecida a Obukhovsky e o seu estádio, que tinham sobrevivido à Primeira Guerra Mundial às revoluções e à Guerra Civil de 1918-22.
Em 1925 os trabalhadores
Leningradsky Metallichesky Zavod (LMZ) (2), fundavam outro clube que seria um dos antepassados do
Zenit, um clube de trabalhadores-jogadores da siderurgia conhecido como o
Stalinets (3), que curiosamente levava o nome do grande líder soviético.
Seriam estes dois clubes que se fundiram em vésperas da
Segunda Guerra Mundial, mas já em 1936 o
Bolshevik se havia tornado
Zenit, passando a fazer parte da empresa com esse nome, nome com que o FK
Zenit disputou o campeonato soviético.
O Stalinets chegou à final da Taça da URSS Em 1939, enquanto o
Zenit se afundava na II Divisão. Correndo riscos de nova despromoção, o
Zenit viu o Stalinets ser integrado no seu seio, numa das habituais fusões por decreto do futebol soviético, passando a contar com os seus jogadores. Por pressão do Comissariado do Povo das Armas e das Munições, que controlava a LMZ, nascia então o Futbolny Klub
Zenit Leningrad que o clube passou a ser gerido pela GOMZ, a Fábrica de Óptica Mecânica, que mais tarde se tornaria na famosa
Leningradskoye Optiko Mechanichesckoye Obyedinenie, mundialmente conhecida como LOMO.
Começo adiado
Quando tudo parecia estar preparado para finalmente o projeto do
Zenit avançar, a Alemanha nazi invadiu a Polónia, iniciando a
Segunda Guerra Mundial. Um ano e meio depois, a Alemanha declarava guerra à União Soviética e o país entrava no mais devastador conflito da sua história.
O cerco de Leninegrado é um dos mais trágicos capítulos da Segunda Guerra Mundial.
O avanço nazi foi imparável, chegando às portas de Moscovo no inverno de 1941 e com o exército alemão a lançar cerco a Leninegrado. A vida na cidade tornou-se um verdadeiro pesadelo, um pesadelo que durou quase 900 dias, até Janeiro de 1944, num dos mais longos e destrutivos cercos da História da Humanidade, que provocou a morte de quase cinco milhões de pessoas entre civis, soldados russos e soldados alemães. Quase 90% da população perdeu a vida no cerco.
Leninegrado aguentou estoicamente e a resistência da cidade tornou-a num
símbolo da coragem e do heroísmo soviético. Dos escombros da cidade, o
Zenit renasceria. A maioria dos jogadores e trabalhadores da fábrica perdeu a vida no conflito. Os dirigentes e a sede do clube tinham sido evacuadas para Kazan, aquando da eminência de Leninegrado cair em mãos alemãs.
Todavia, a maioria dos membros do clube lutaram na cidade, lutando lado a lado de amigos, familiares e colegas. Seria em homenagem ao sangue dos heróis tombados e para honrar os vivos que o
Zenit renasceu e ainda em 1944 festejaria o primeiro grande troféu da sua história.
O primeiro sucesso
Com a contra-ofensiva russa a libertar o país da invasão alemã, o país aos poucos tentava voltar à normalidade. As autoridades lançaram a ideia do regresso das competições desportivas e a Taça da URSS de futebol foi disputada a partir do verão, contando inclusive com a presença de equipas da recentemente libertada Ucrânia, como era o caso do Dynamo de
Kiev.
1944: contra todas as expectativas, o Zenit conquistou a Taça da União Soviética em 1944.
As autoridades soviéticas fizeram questão que Leninegrado tivesse uma equipa na competição e o
Zenit recebeu o direito de participar e todo o apoio necessário para poder competir. Com aquele grupo improvisado de jogadores, na melhor das hipóteses o
Zenit disputaria uma eliminatória ou duas. Todavia, os azuis eliminaram a equipa do Dynamo de Moscovo, antes de eliminarem o Dynamo de Moscovo 2 provocando grande escândalo na capital. Nos quartos-de-final seria a vez de outro Dynamo, o de Baku, do Azerbaijão, antes de nas meias-finais a vítima ser outro dos «grandes» da capital, o Spartak de Moscovo. Contra todas as expetativas, o
Zenit ia jogar a final, com um grupo de jovens e ex-combatentes, de gente que ainda há meses era um bando de mal-nutridos.
A grande final foi disputada em Moscovo, no Estádio do Dynamo, a 27 de Agosto. A equipa de Konstantin Lemechev ficou na história, batendo os moscovitas do CSKA por 2x1, graças a golos de Chuchelov (58) e Salnikov (68), dando a volta ao golo inicial do CSKA. O capitão Kurenkov, um herói de guerra condecorado, nem acreditava que meses antes comera papel de parede e bebera água das poças da chuva para sobreviver e agora segurava entre as mãos a Taça da URSS. Talvez nunca na história do futebol tenha havido um campeão tão improvável...
Época negativa
Apesar do sucesso, o
Zenit entrou num período conturbado. Os resultados pioravam e em 1948 a dissolução do clube esteve em cima da mesa. Contudo, os apaixonados do jogo e os adeptos do clube ajudaram a manter vivo o mais representativo emblema da cidade.
1984: O Zenit torna-se campeão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas pela primeira (e única) vez na história.
Em 1958 Georgy Zharkov chegou ao clube, proveniente de Moscovo, para tranformar a sua filosofia de formação de jogadores, criando as bases para o futuro.
Salvos pela história
Em 1967 o
Zenit terminou no último lugar da Liga Soviética, condenado à despromoção, o que parecia uma triste ironia, quando a cidade de Leninegrado era o centro das atenções de toda a União Soviética, e o do mundo socialista também, como palco das comemorações do 50.º aniversário da Revolução de Outubro, ou Bolchevique.
Como beneplácito pela cidade ter sido capital da «gloriosa revolução», Leninegrado pôde ver o seu clube mais representativo manter-se entre a elite soviética, por decreto e como tributo aos históricos dias de Outubro de 1917.
Os resultados começaram a melhorar na década de 70, periodo em que Evgeny Goryansky passou a dirigir o clube, mas os bons resultados acabaram por levar o treinador de São Petersburgo para a selecção nacional.
Andrey Arshavin grande estrela do clube no novo milénio e um dos orgulhos da academia do Zenit.
German Zonin foi o eleito para suceder-lhe, introduzindo novos métodos, recorrendo ao serviço de cientistas, inovando na área da investigação ciêntifica no futebol, muitos anos antes de que a maioria dos grandes clubes mundiais.
Contudo, os resultados não corresponderam ao esperado e o melhor que Zonin conseguiu foi levar o clube a um quinto lugar.
Finalmente a glória
Yury Morozov sucedeu a Zonin com uma aposta decidida nas camadas jovens. Ao contrário da opinião dos céticos, os jovens do
Zenit rapidamente deram fruto. Em 1980 o clube terminou em terceiro lugar, qualificando-se para as competições europeias pela primeira vez na sua história.
Quatro anos volvidos o clube voltou à final da Taça, perdida para o Dynamo de Moscovo, mas em Novembro do mesmo ano, uma vitória de 4x1 sobre o Metalist Kharkiv assegurou o título de campeão soviético.
Durante o resto da década de 80, o
Zenit não voltou a igualar os feitos de 1984, permanecendo na sombra dos clubes de Moscovo e da Ucrânia.
Na Sombra
Com o fim da União Soviética em 1991, Leninegrado voltou a denominar-se São Petersburgo, nome que o
Zenit voltou orgulhosamente a utilizar.
Despromovido em 1992, regressaria ao primeiro escalão em 1996, onde aos poucos se tornou numa referência e num dos clubes mais importantes do país, aproveitando os frutos das suas escolas, de onde se destacava entre outros o nome de Andrey Arshavin.
A era Gazprom
Vencedor da Taça da Rússia em 1999, o
Zenit conquistou a terceira posição na Liga em 2001. Em 2002 voltou à final da Taça e no ano seguinte, conquistou a Taça da Liga, terminando em segundo lugar na Liga. O sucesso adivinhava-se próximo e em 2007, São Petersburgo festejou nova vitória do
Zenit num Campeonato Nacional.
O português Danny em ação contra o Manchester United na final da Supertaça Europeia.
Em Dezembro de 2005, a Gazprom, uma das principais empresas do país, passara a ser a acionista maioritária do clube e o
Zenit tornara-se no mais recente membro do "clubes dos ricos" do futebol europeu.
Com uma injeção de 100 milhões de dólares, os dirigentes do clube adquiriram mais reforços e o
Zenit passou a ter novas ambições na Europa, conseguindo tornar-se o segundo clube russo (4) a vencer uma competição europeia, batendo o Glasgow Rangers por 2x0 na final. Antes, nas meias, o
Zenit despachara o
Bayern de Munique com um agregado de 5x1 que deixara a Europa boquiaberta.
Ambição
Em Agosto o
Zenit bateria o
Manchester United por 2x1, conquistando a Supertaça europeia, com o português Danny a apontar o golo decisivo logo no jogo da estreia, o primeiro de muitos, que o tornaram num dos grandes símbolos da história do clube.
Campeões em 2010 e em 2011/12, o
Zenit tornou-se um dos grandes compradores do futebol europeu, com contratações sonantes e dispendiosas como Hulk, Witsel, Semak, Shirokov, Bruno Alves, que agitavam o mercado e mostravam a força do «capital» da Gazprom na formação de uma grande equipa.
2014 marca o fim do «reinado» do italiano Spalletti no banco do Petrovsky, sendo substituído pelo português
Villas-Boas que não seria capaz de conquistar o título no que faltava jogar da Liga.
Perdido o título,
Villas-Boas conseguiu os reforços desejados, preparando uma nova equipa para conquistar a Liga e brilhar nas
Champions, e para em breve lotar a novíssima arena que será a nova casa do clube.
Com o português ao leme, o
Zenit endireitou-se e voltou a entrar no caminho das conquistas. Depois de ter caído nos quartos-de final da Liga Europa em 2014/15, o campeonato (2014/15) , a Supertaça (2015) e a Taça da Rússia (2015/16) foram ganhos com o cunho do jovem técnico luso, que deixou marca profunda no clube.
Lucescu, Mancini... E a solução estava em casa
Na fase pós-Villas-Boas, o Petrovsky entrou em declínio desportivo. Mircea Lucescu, conceituado treinador romeno que dispensa apresentações, foi apresentado e a verdade é que à exceção de uma Supertaça em 2016, a era do experiente treinador ficou marcada pelo fracasso. As polémicas dentro e fora de campo acabaram por deixar uma má imagem. Uma completa desilusão a todos os níveis, tendo em conta as expetativas iniciais.
Em 2017/18, Mancini assumiu e nem um ano se manteve no comando. Pese as contratações, o
Zenit falhou em todas as competições, sendo que, na Liga, não passou do quinto posto.
A Squadra Azzurra bateu à porta do técnico e a direção russa decidiu apostar num velho conhecido. Sergey Semak deixou o leme do Ufa para liderar, em 2018/19, uma casa que havia sido sua durante largos anos. A aposta, tida inicialmente como arriscada, viria a justificar o investimento mais tarde com a conquista do quinto título de campeão da história do clube, terminando, assim, com as épocas de glória dos rivais de Moscovo.
O trabalho de Sergei Semak continuou a dar frutos a nível interno no
Zenit, que se sagrou novamente campeão russo em 2019/20 - com 15 pontos de vantagem para o 2º classificado, o Lokomotiv -, juntando ainda a Taça da Rússia, onde venceu o Khimki por
0x1 na final. Nessa temporada, a nível interno, o
Zenit falhou apenas a conquista da Supertaça, mas acabou por «remediar» isso mesmo em 2020/21, onde bateu o Lokomotiv (
2x1) na Supertaça russa. Apesar de ter caído na taça cedo, a formação de São Petersburgo não deixou escapar o tricampeonato, a primeira vez que logrou em alcançar tal feito na sua história.
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(1) - Polícia secreta do Czar.
(2) - Siderurgia de Leninegrado.
(3) - O nome nada tinha a ver com Estaline, o líder da URSS depois da morte de Lenine. Estaline, em russo «
Stalin», era a alcunha por que era conhecido Josef Vissarionovitch Stalin, que tivera como nome de batismo Iossif Vissarionovitch Djugashvili. «
Stalin» vinha do russo «
Stal», que significa «
Aço», assim como «
Stalinets» vinha da mesma raíz. Daí a confusão entre «
Stalinets» e Estalinistas, «aqueles que trabalham o metal».
(4) - O CSKA de Moscovo fora o primeiro ao bater o
Sporting por 1x3 na final de Lisboa em 2005.
Iossif Vissarionovitch Djugashvili