Que feio é o belo jogo quando a tabela classificativa não representa aquilo que foi o futebol jogado dentro das quatro linhas. Ou, não pior, mas talvez mais feio ainda, quando representa com precisão, mas apenas depois de asteriscos, legendas e notas de rodapé.
Essa foi a realidade do futebol italiano durante muito tempo, depois do rebentar do calciocaos, um esquema de resultados combinados que envolveu vários clubes da Serie A, como a Juventus, o AC Milan, Fiorentina e a Lazio. As piadas de adeptos que colocam dinheiro ao barulho a cada erro de arbitragem já estão velhas e cansadas, mas em Itália já há muito tempo que perderam a piada. Deixam o travo amargo de uma verdade difícil de aceitar, pois a liga de futebol do país perdeu assim grande parte do seu valor.
Foi já perto do final da temporada de 2005/06 da Serie A que eclodiu um dos casos mais polémicos na história do futebol mundial. Foi pouco mais de um mês antes do pontapé de saída do Campeonato do Mundo de 2006 que a Gazzeta Dello Sport chocou o país com notícias acerca das chamadas telefónicas ilegais de Luciano Moggi, diretor da Juventus. Primeiro, surgiu uma conversa em que Moggi insulta e reclama com o árbitro depois de um jogo em que os bianconeri foram derrotados, e só essa notícia bastou para correr muita tinta no país, mas seguir-se-iam muitas mais.
O calciopoli, como ficou conhecido o escândalo em Itália, é descrito como um esquema de resultados combinados, embora esse não seja um rótulo completamente correto. O verdadeiro problema no futebol italiano era a tentativa (e sucesso) de influência nos resultados por parte dos clubes envolvidos. Moggi influenciava os resultados através da escolha de árbitros para os jogos da Juventus, recorrendo apenas àqueles que favorecessem a equipa ou que, em caso de erro ou dúvida, tivessem maior inclinação para decidir a favor do clube de Turim. O sistema funcionava, e prova disso era o sucesso da vecchia signora, que se sagrara campeã com apenas uma derrota em 38 jogos.
O sistema de Moggi foi então aproveitado por outros, que também procuravam sucesso doméstico. Nomes como Adriano Galliani, então vice-presidente do AC Milan, Claudio Lotito, o presidente da Lazio, o presidente da Fiorentina Andrea Della Valle, que com o conhecimento e ajuda de alguns dirigentes da Federação Italiana, nomeadamente designadores de equipas de arbitragem, conseguiram contornar as regras durante duas temporadas, antes de se verem expostos diariamente em capas de jornais.
Durante o pico do escândalo em Itália, todo o país estava afetado pela situação. Cada dia surgiam mais notícias e mais dados, revelados pela Gazzetta Dello Sport, que vendia mais jornais que nunca, com um acréscimo de várias dezenas de milhares de cópias a serem vendidas por dia em comparação à média anterior ao calciocaos.
A investigação começou imediatamente à luz dos dados revelados diariamente. Muitos jogos foram investigados inicialmente, sendo maioritariamente da Juventus, Fiorentina, Lazio e AC Milan, embora clubes de menor expressão como o Reggina e o Arezzo também tenham estado envolvidos e consequentemente tenham sido igualmente alvos de inspeção.
O mundo não estava indiferente ao que se passava no país transalpino, o que levou a uma reação da FIFA, que quis ver a situação resolvida imediatamente ou então colocaria a seleção italiana fora do campeonato do mundo. A resposta italiana surgiu a quatro de junho de 2006, cinco dias antes do início do Mundial, quando o procurador da federação de futebol italiana, Stefano Palazzi, exigiu a despromoção dos quatro clubes mais envolvidos no escândalo. A Juve seria então enviada diretamente para a Serie C, enquanto que a Lazio e Fiorentina seriam enviados para o segundo escalão, onde teriam competido com grandes deduções pontuais, se não tivessem surgido vários apelos antes do início da temporada de 2006/07.
A Itália acabou por não só participar no Campeonato do Mundo de 2006 na Alemanha, como venceu a competição, uma fórmula interessante mas que não foi forte o suficiente para tirar as nódoas que manchavam o futebol italiano, num ano que terminou mesmo com campeões do mundo a disputar a segunda divisão.
Outras penas pesadas foram para Pasquale Foti, presidente do Reggina, que foi suspenso durante dois anos e meio, a mesma duração que Pierluigi Pairetto, o chefe de arbitragem da Federação Italiana. Dirigentes dos vários clubes seriam suspensos durante longos períodos, enquanto que os líderes da Fiorentina e Lazio seriam suspensos durante um ano e quatro meses, respetivamente.
Por ser a equipa que criou o problema, em oposição aos que apenas se aproveitaram da sua existência prévia, a Juventus recebeu a pena mais pesada, e caiu com estrondo na Serie B, para além de ver os seus títulos das duas temporadas anteriores retirados. As restantes equipas a serem despromovidas viram as suas sentenças reduzidas para deduções pontuais e exclusão do apuramento direto para competições europeias: Fiorentina começou com -12 pontos, o Milan com -8, Lazio com -3 e Reggina com -11, para além de outras multas que afetaram todos os clubes, incluindo a disputa de alguns jogos à porta fechada.
Em 2015, surgiu o julgamento final, que encerrou o calciopoli com todas as acusações sobre Luciano Moggi e Antonio Giraudo a serem retiradas por falta de provas concretas, o que levou a que o clube exigisse os seus dois títulos de volta, bem como uma compensação milionária. A exigência é de mais de 400 milhões de euros, justificados pela perda de patrocínios, valor da marca, bilheteira e jogadores como Cannavaro, Zambrotta, Vieira, Ibrahimovic ou Thuram.
A Juventus foi despromovida e pareceu perder tudo, mas o resurgimento foi mais rápido do que alguém achou possível. O primeiro momento que permitiu um retorno imediato à Serie A foi as juras de lealdade de vários jogadores, que decidiram ficar no clube e catapultá-lo para onde deveria estar. Nomes como Gianluigi Buffon, Del Piero, Trezeguet e Nedved arrastaram o clube até à conquista da Serie B.
Dos seis maiores clubes em Itália, apenas dois não estiveram envolvidos naquele que foi o maior escândalo do futebol italiano: o Inter e a Roma. Mas foi o Inter quem mais beneficiou com a queda dos rivais, sagrando-se campeão cinco vezes consecutivas, entre 2006 e 2010.
Ora, isto poderia ser considerado como uma mera inevitabilidade, a existência de uma grande equipa que se vê com uma grande vantagem para todas as equipas à sua volta e agarra a oportunidade, mas a evolução do caso polémico tem chamado cada vez mais a atenção para os nerazzurri, mesmo que não tenham estado envolvidos no calciopoli inicialmente.
Com o passar dos anos, o Inter começou a ser retratado como a força que puxou os cordelinhos do calciocaos. A narrativa passa pela angústia de uma equipa que não vence o campeonato desde 1989 e viu uma oportunidade de ganhar vantagem por meios extra-desportivos. Um nome que foi atirado várias vezes durante os anos que se seguiram à sentença do calciocaos foi o de Carlo Buora, o então vice-presidente do Inter que estava também envolvido com a TIM e era um dos grandes accionistas da Gazzetta Dello Sport. Buora, cujos envolvimentos com todos estes participantes diretos e indiretos da polémica não eram considerados uma coincidência pelos adeptos de futebol italianos, negou sempre o seu envolvimento, bem como o do principal líder do Internazionale, Massimo Moratti.
A polémica vai até aí, mas não parece ter um final em Itália, onde, por mais que os anos passem, continuará a ser um tema discutido em bares, estádios e inevitavelmente tribunais. Pode-se falar de vencedores e perdedores, mas a verdade inquestionável é que com o calciocaos toda a Itália perdeu, sendo que aquela que era para muitos a melhor liga do mundo começou naquele verão em 2006 uma queda de valor e interesse que nunca mais recuperaria.