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Serie A 2005/2006
Casos

Calciocaos: O escândalo da Serie A

Texto por Ricardo Miguel Gonçalves
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Que feio é o belo jogo quando a tabela classificativa não representa aquilo que foi o futebol jogado dentro das quatro linhas. Ou, não pior, mas talvez mais feio ainda, quando representa com precisão, mas apenas depois de asteriscos, legendas e notas de rodapé.

Essa foi a realidade do futebol italiano durante muito tempo, depois do rebentar do calciocaos, um esquema de resultados combinados que envolveu vários clubes da Serie A, como a Juventus, o AC Milan, Fiorentina e a Lazio. As piadas de adeptos que colocam dinheiro ao barulho a cada erro de arbitragem já estão velhas e cansadas, mas em Itália já há muito tempo que perderam a piada. Deixam o travo amargo de uma verdade difícil de aceitar, pois a liga de futebol do país perdeu assim grande parte do seu valor.

A maior polémica

Foi já perto do final da temporada de 2005/06 da Serie A que eclodiu um dos casos mais polémicos na história do futebol mundial. Foi pouco mais de um mês antes do pontapé de saída do Campeonato do Mundo de 2006 que a Gazzeta Dello Sport chocou o país com notícias acerca das chamadas telefónicas ilegais de Luciano Moggi, diretor da Juventus. Primeiro, surgiu uma conversa em que Moggi insulta e reclama com o árbitro depois de um jogo em que os bianconeri foram derrotados, e só essa notícia bastou para correr muita tinta no país, mas seguir-se-iam muitas mais.

O calciopoli, como ficou conhecido o escândalo em Itália, é descrito como um esquema de resultados combinados, embora esse não seja um rótulo completamente correto. O verdadeiro problema no futebol italiano era a tentativa (e sucesso) de influência nos resultados por parte dos clubes envolvidos. Moggi influenciava os resultados através da escolha de árbitros para os jogos da Juventus, recorrendo apenas àqueles que favorecessem a equipa ou que, em caso de erro ou dúvida, tivessem maior inclinação para decidir a favor do clube de Turim. O sistema funcionava, e prova disso era o sucesso da vecchia signora, que se sagrara campeã com apenas uma derrota em 38 jogos.

O sistema de Moggi foi então aproveitado por outros, que também procuravam sucesso doméstico. Nomes como Adriano Galliani, então vice-presidente do AC Milan, Claudio Lotito, o presidente da Lazio, o presidente da Fiorentina Andrea Della Valle, que com o conhecimento e ajuda de alguns dirigentes da Federação Italiana, nomeadamente designadores de equipas de arbitragem, conseguiram contornar as regras durante duas temporadas, antes de se verem expostos diariamente em capas de jornais.

Durante o pico do escândalo em Itália, todo o país estava afetado pela situação. Cada dia surgiam mais notícias e mais dados, revelados pela Gazzetta Dello Sport, que vendia mais jornais que nunca, com um acréscimo de várias dezenas de milhares de cópias a serem vendidas por dia em comparação à média anterior ao calciocaos.

Berlusconi minimizou estragos no Milan @Getty / Valerio Pennicino
Mas não era a publicação desportiva italiana quem recolhia a informação, apenas partilhava todos os dados que eram conseguidos através de escutas, que mais tarde se provariam ilegais, feitas pela TIM, uma empresa de telecomunicações italiana que há muitos anos está envolvida no futebol italiano através de patrocínios.

A investigação começou imediatamente à luz dos dados revelados diariamente. Muitos jogos foram investigados inicialmente, sendo maioritariamente da Juventus, Fiorentina, Lazio e AC Milan, embora clubes de menor expressão como o Reggina e o Arezzo também tenham estado envolvidos e consequentemente tenham sido igualmente alvos de inspeção.

O mundo não estava indiferente ao que se passava no país transalpino, o que levou a uma reação da FIFA, que quis ver a situação resolvida imediatamente ou então colocaria a seleção italiana fora do campeonato do mundo. A resposta italiana surgiu a quatro de junho de 2006, cinco dias antes do início do Mundial, quando o procurador da federação de futebol italiana, Stefano Palazzi, exigiu a despromoção dos quatro clubes mais envolvidos no escândalo. A Juve seria então enviada diretamente para a Serie C, enquanto que a Lazio e Fiorentina seriam enviados para o segundo escalão, onde teriam competido com grandes deduções pontuais, se não tivessem surgido vários apelos antes do início da temporada de 2006/07.

O julgamento

A Itália acabou por não só participar no Campeonato do Mundo de 2006 na Alemanha, como venceu a competição, uma fórmula interessante mas que não foi forte o suficiente para tirar as nódoas que manchavam o futebol italiano, num ano que terminou mesmo com campeões do mundo a disputar a segunda divisão.

Ganharam o Mundial na Alemanha @Getty / Clive Mason
As sentenças iniciais foram alteradas ao longo do julgamento e apelos posteriores, na mesma medida em que surgiam novas informações. Para todos os envolvidos, isto significou uma redução, excepto para Luciano Moggi, que viu a sua suspensão de cinco anos passar para uma exclusão vitalícia do futebol, enquanto que Antonio Giraudo, outro administrador da Juventus bastante envolvido no escândalo, seria suspenso durante cinco anos.

Outras penas pesadas foram para Pasquale Foti, presidente do Reggina, que foi suspenso durante dois anos e meio, a mesma duração que Pierluigi Pairetto, o chefe de arbitragem da Federação Italiana. Dirigentes dos vários clubes seriam suspensos durante longos períodos, enquanto que os líderes da Fiorentina e Lazio seriam suspensos durante um ano e quatro meses, respetivamente.

Por ser a equipa que criou o problema, em oposição aos que apenas se aproveitaram da sua existência prévia, a Juventus recebeu a pena mais pesada, e caiu com estrondo na Serie B, para além de ver os seus títulos das duas temporadas anteriores retirados. As restantes equipas a serem despromovidas viram as suas sentenças reduzidas para deduções pontuais e exclusão do apuramento direto para competições europeias: Fiorentina começou com -12 pontos, o Milan com -8, Lazio com -3 e Reggina com -11, para além de outras multas que afetaram todos os clubes, incluindo a disputa de alguns jogos à porta fechada.

Inter começou por lucrar @Getty / PIERRE-PHILIPPE MARCOU
A partir daí o caso estaria encerrado, certo? Pois... Errado. Com o passar dos anos, a Federação de Futebol Italiana continuou a ser acusada de tomar medidas incorretas, depois da pressão da FIFA para resolver o caso rapidamente. A Juventus nunca aceitou o facto dos títulos terem sido retirados, e até hoje conta com dois Scudettos a mais no seu currículo, quando um foi dado como nulo e o outro entregue ao Inter. Desde 2010 que o caso foi reaberto na justiça por Andrea Agnelli, presidente dos bianconeri, que tem vindo a ganhar vários julgamentos em função de novas revelações no caso, como a forma como a informação foi adquirida e gravações que foram misteriosamente perdidas e não podem ser comprovadas.

Em 2015, surgiu o julgamento final, que encerrou o calciopoli com todas as acusações sobre Luciano Moggi e Antonio Giraudo a serem retiradas por falta de provas concretas, o que levou a que o clube exigisse os seus dois títulos de volta, bem como uma compensação milionária. A exigência é de mais de 400 milhões de euros, justificados pela perda de patrocínios, valor da marca, bilheteira e jogadores como Cannavaro, Zambrotta, Vieira, Ibrahimovic ou Thuram.

A queda da Velha Senhora e o vencedor silencioso

A Juventus foi despromovida e pareceu perder tudo, mas o resurgimento foi mais rápido do que alguém achou possível. O primeiro momento que permitiu um retorno imediato à Serie A foi as juras de lealdade de vários jogadores, que decidiram ficar no clube e catapultá-lo para onde deveria estar. Nomes como Gianluigi Buffon, Del Piero, Trezeguet e Nedved arrastaram o clube até à conquista da Serie B.

Del Piero ficou ainda mais símbolo @Getty / Stuart Franklin
Seguiu-se uma reestruturação do clube, que se via a perder impacto no topo da Serie A. Uma nova direção, um novo estádio, novos jogadores e apenas cinco anos de volta no primeiro escalão para voltar a conquistar um Scudetto, em 2011/12, uma conquista que se repetiu, e repetiu, e repetiu, até que ficou estabelecida uma nova hegemonia no futebol italiano, que superou por completo um Inter de Milão que parecia ser a equipa com mais a ganhar no meio de todo o calciocaos.

Dos seis maiores clubes em Itália, apenas dois não estiveram envolvidos naquele que foi o maior escândalo do futebol italiano: o Inter e a Roma. Mas foi o Inter quem mais beneficiou com a queda dos rivais, sagrando-se campeão cinco vezes consecutivas, entre 2006 e 2010.

Ora, isto poderia ser considerado como uma mera inevitabilidade, a existência de uma grande equipa que se vê com uma grande vantagem para todas as equipas à sua volta e agarra a oportunidade, mas a evolução do caso polémico tem chamado cada vez mais a atenção para os nerazzurri, mesmo que não tenham estado envolvidos no calciopoli inicialmente.

Com o passar dos anos, o Inter começou a ser retratado como a força que puxou os cordelinhos do calciocaos. A narrativa passa pela angústia de uma equipa que não vence o campeonato desde 1989 e viu uma oportunidade de ganhar vantagem por meios extra-desportivos. Um nome que foi atirado várias vezes durante os anos que se seguiram à sentença do calciocaos foi o de Carlo Buora, o então vice-presidente do Inter que estava também envolvido com a TIM e era um dos grandes accionistas da Gazzetta Dello Sport. Buora, cujos envolvimentos com todos estes participantes diretos e indiretos da polémica não eram considerados uma coincidência pelos adeptos de futebol italianos, negou sempre o seu envolvimento, bem como o do principal líder do Internazionale, Massimo Moratti.

@Getty /
A história que circula atualmente e há muitos anos em Itália vê o Inter como o causador da polémica. Diz-se que foi Moratti quem adquiriu gravações ilegalmente, dois anos antes do calciocaos, e que quando o registos de áudio foram desvalorizados por magistrados em Turim, Roma e Nápoles por falta de provas incriminatórias, o líder nerazurro voltou-se para um plano B, que passava pelo seu vice-presidente e os seus contactos nos media. Em suma, os interesses da TIM, Gazzetta e Inter estavam perfeitamente alinhados, para além das três entidades terem as mesmas pessoas na liderança, e a ideia final em Itália foi que tudo isto pavimentou o caminho do Inter para o sucesso, à custa dos seus rivais.

A polémica vai até aí, mas não parece ter um final em Itália, onde, por mais que os anos passem, continuará a ser um tema discutido em bares, estádios e inevitavelmente tribunais. Pode-se falar de vencedores e perdedores, mas a verdade inquestionável é que com o calciocaos toda a Itália perdeu, sendo que aquela que era para muitos a melhor liga do mundo começou naquele verão em 2006 uma queda de valor e interesse que nunca mais recuperaria.

Comentários

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motivo:
TI
Semelhança
2021-07-14 12h05m por ti_maria_69
Qualquer semelhança com a realidade portuguesa é pura coincidência.
Com excepção das punições aos clubes e seus dirigentes, pois aqui no burgo tudo passou incólume. . .
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