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    História
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    A «Trégua do Natal» de 1914

    Texto por João Pedro Silveira
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    A «Trégua de Natal» foi um armistício espontâneo que ocorreu por entre as trincheiras da frente ocidental no Natal de 1914, durante a I Guerra Mundial. No meio da mortandade sem sentido da I Guerra, houve canções de natal, troca de presentes entre soldados alemães de um lado, e ingleses e franceses do outro, rezou-se pelas almas dos que partiram e houve até mesmo jogos de futebol, jogados na «terra de ninguém», nessa fria manhã de Natal...  

    Uma Guerra sem par

    É uma história antiga, contada por inúmeras vezes... Tudo começou num engano num trajeto de automóvel (1) numa pequena rua de Sarajevo, que redundou num ultimato que culminou numa declaração de guerra da Áustria à Sérvia. A máquina militar entrava em cena e pouco tempo depois a Europa encontrava-se dividida por dois blocos em guerra, liderados de um lado pela Alemanha e do outro pela Grã-Bretanha. Começava assim a I Guerra Mundial, a Guerra que se pensava que iria acabar de vez com todas as guerras...

    De tal maneira foi destrutiva e eficaz na forma de acabar com vidas humanas, que ficou conhecida pelos contemporâneos e vindouros, como a Grande Guerra, deixando uma marca indelével na memória comum. 
     
    No fim do conflito que ceifou 16 milhões, um número jamais possível até então, a Europa devastada começava a longa agonia do seu declínio, perdendo o domínio das rédeas do planeta durante a II Guerra Mundial, que para muitos historiadores, não é mais do que a continuação do conflito de 1914-18, após uma breve trégua de vinte anos...
     
    Caíram impérios centenários como o Russo, o Otomano ou o Austro-húngaro, a Revolução Russa permitiu o primeiro estado socialista do mundo: a União Soviética. Nas décadas seguintes, o fantasma do fascismo avançou imparável na Europa, primeiro tomando o poder na Itália, depois em Portugal, Mais tarde na Hungria, Grécia, Lituânia, Alemanha, Jugoslávia, por fim na Espanha... 
     
    «Noite Feliz»
     
    Nos dias que antecederam o Natal de 1914, nas trincheiras da frente ocidental, desde o Mar do Norte à fronteira com a Suíça, começaram a surgir sinais do espírito natalício. Dias antes, o Papa Bento XV, apelara a um cessar-fogo, prontamente recusado pelos dois lados do conflito. 
     
    Na noite de 24, os tiros foram-se calando espontaneamente, ao longo da frente. Na zona de Ypres, na Bélgica, soldados alemães começaram a colocar velas ao longo das trincheiras, decorando-as com enfeites e começando a decorar também algumas árvores de Natal, ao mesmo tempo que entoavam canções de Natal. Do outro lado das barricadas, os ingleses responderam, começando a cantar as suas canções de Natal e algumas versões, das canções que os alemães já cantavam.
     
    Saudações de «Feliz Natal» começaram a ser dedicadas ao inimigo, até que alguns soldados, pondo de parte as armas, avançaram para a Terra de Ninguém, onde ingleses e franceses, se encontraram com os alemães, começando a trocar os mais diversos presentes que tinham à mão, como chocolates, tabaco ou álcool.
     
    Debaixo de um frio gelado, com muitos graus abaixo do zero, conseguiu-se aquecer o coração dos homens e celebrou-se o Natal, conversou-se, trocaram-se alimentos, abraços e sorrisos. Rezou-se em conjunto, recuperam-se os corpos de alguns dos que tinham tombado recentemente na zona entre trincheiras. A trégua, nalguns casos, só durou essa noite, voltando a artilharia a fazer estragos logo pela manhã.
     
    A bola da paz
     
    Porém, noutras zonas, a trégua continuou pelo dia de Natal fora (2), realizando-se diversos jogos de futebol entre os alemães e os aliados ocidentais. Dos mais diversos jogos que se jogaram ao longo de centenas de quilómetros da frente. 3x2, a favor de uma equipa de alemães, foi o único dos resultados que chegou até nós, documentado em cartas escritas nos dias seguintes, tanto por alemães como ingleses às respetivas famílias.
     
    Essas cartas falam da emoção do momento, da alegria de partilhar um jogo, chutar uma bola com os homens que tinham tentado matar nos dias anteriores. A espontaneidade dos jogos de futebol na «terra de ninguém», demonstrou a dimensão que o futebol começava a ter entre os europeus, tornando-se já então, no desporto mais amado. 
     
    Da mesma maneira que a trégua começou, acabaria por terminar por mútuo acordo. E para estranheza de mais dos cem mil que tinham participado nos diversos armísticios de ocasião, ao fim de algum tempo, as metralhadoras voltaram a disparar, as granadas a rebentar, a artilharia a bombardear. A guerra voltava...
     
    Para  memória futura
     
    Até às últimas décadas do século XX, muitos pensavam que tudo não passara de um rumor de trincheira. Contudo, os relatos, as cartas, e as histórias acabaram por confirmar, e mostrar que no Natal de 1914, na frente ocidental, milhares de homens interromperam a chacina para conviver, festejar o Natal e inclusivamente jogar futebol...
     
    As gerações vindouras nunca esqueceram, e a cultura popular está repleta de referências à «Trégua de Natal», em registos tão dispares como a série cómica inglesa Blackadder (1989) que se passava nas trincheiras da I Guerra Mundial, o vídeo musical de Paul McCartney para a música Pipes of Peace de 1983, a música All Together Now dos britânicos Farm de 1990, ou a mais recente representação dos acontecimentos do dia, no filme de 2005, Joyeux Noël [pt: «Feliz Natal»], de Christian Carion, com Daniel Brühl.
     
    E se passado tantos anos, muitos ainda lembram a «Trégua de Natal» como um dos mais tocantes e belos momentos da história, um intervalo de luz por entre a chacina e o horror, a verdade é que então nem todos viram nessa trégua um exemplo a ser seguido. O General Sir Horace Smith-Dorrien, Comandante do II Corpo Britânico, quando informado do sucedido, proibiu imediata e terminantemente qualquer contacto com o inimigo, sublinhando a necessidade de se manter o espírito combativo, demovendo qualquer ideia mais amigável relativamente ao inimigo. A ameaça de prisão e fuzilamento dos prevaricadores foi suficiente para assustar as mentes mais "pacifistas".
     
    Do outro lado, um jovem cabo, do 16º Regimento da Baviera, de seu nome Adolph Hitler, vociferava para quem o quisesse ouvir: «Estas coisas não deviam acontecer durante do tempo de guerra. Porventura os alemães perderam já todo o sentido de honra?» 
     
    Nem Hitler, nem os altos comandos dos dois lados se precisavam preocupar. ##Rapidamente o conflito foi retomado, com ofensivas cada vez mais onerosas em vidas para ambos os lados. Um ano depois, a quantidade imensa de mortes às mãos das metralhadoras, mas também dos bombardeamentos e dos gases venenosos, provocaram um crescimento tal do ódio ao inimigo, que a trégua já não pode ter lugar.
     
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    (1) - o Arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-húngaro, foi assassinado a 28 de julho de 1914, em Sarajevo. Nesse mesmo dia, foi vítima de uma tentativa falhada de assassinato. Apesar do susto, sobreviveu sem ferimentos. Horas mais tarde, quando já depois de ter visitado os feridos do atentado da manhã, o condutor do seu automóvel perdeu-se no caminho do hospital, e vendo-se obrigado a fazer inversão de marcha. Foi nessa altura que o motor do veículo foi abaixo, num cruzamento em frente ao bar onde Gavrilo Princip se refugiara para beber um copo e esquecer o falhanço da manhã. O revolucionário nem queria acreditar que o destino lhe dera uma segunda oportunidade e ali estava o Arquiduque desprotegido, à mão de semear. Da segunda vez, Princip não falhou e consumou o atentado, assassinando Francisco Fernando. 
    (2) - Em alguns locais da frente as tréguas chegaram até ao Ano Novo.

    Comentários

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    motivo:
    GL
    Natal 1914
    2017-12-24 20h00m por Glorious_Level
    Esta é a prova mais pura que o ser humano não foi feito para a guerra, que dentro de cada um de nós existe paz, amor e respeito pelo proximo.
    É em momentos como este que se vê a grandiosidade do ser humano.

    Nós (raça humana) somos estupidos nos momentos em que deixamos os estimulos externos cegarmo-nos, mas somos grandes quando ouvimos o coração.


    Bom Natal para todos. . . . para os leões, para os dragões, para as águias, e para todos os outros :)
    SP
    Parabéns
    2015-04-18 03h10m por SpecialPereira
    Parabéns equipa zerozero pelo artigo!
    JO
    Parabéns ZeroZero!
    2014-12-24 15h24m por Johnny_Cage
    Uma história espectacular enaltecendo a paz celebrada pelos homens até nos lugares e momentos menos apropriados com o futebol a coroar uma vez mais as mãos que são dadas e os abraços que são dados ao abrigo de um desporto que apesar de ter enveredado por um caminho mais obscuro nos últimos anos continua a celebrar a humanidade a aproximá-la.

    Um bom Natal a esta grande equipa do ZeroZero e a todos vós users, que tenham a felicidade de passá-lo com aqueles que mais significam para vocês!
    TA
    "Fantasma do fascismo"?
    2014-12-24 14h02m por Tartrs
    Sugerindo que o fascismo era intrinsicamente mau (que surgiu como resposta ao comunismo e provou ser melhor em termos de reformas que a plutoc. . . quero dizer, democracia), mas não dizendo o mesmo da União Soviética, um estado monstruoso e super-agressivo? Enfim, só os vencedores podem escrever a história. . .

    Quanto à trégua em si, grande artigo, mostrando o espírito de amizade que a cultura cristã e europeia antiga ainda mostravam, numa altura em que ainda havia maior ...ler comentário completo »
    DR
    Bonito texto
    2014-12-24 12h39m por Drepublix
    Mas que agradável leitura, continuem!
    Bonita lembrança dos 100 anos
    2014-12-24 12h01m por dynamite
    Para quem estiver interessado, fica aqui a publicidade do Sainsbury no Reino Unido este natal a lembrar este aconcimento.

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    Bonita lembrança dos 100 anos
    2014-12-24 11h59m por dynamite
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    BA
    Bruno de Carvalho
    2014-12-24 11h20m por bababa123
    Vê e aprende! ;)
    SA
    vdef
    2014-12-24 10h42m por Sabedoria37
    Andaste desaparecido. . . . . . ou tens andado com outro nick?
    VD
    ZZ
    2013-12-25 14h42m por vdef
    Bom artigo e muito original!
    thunderPT
    2013-12-24 23h18m por EduardoLouro
    estás enganado! Ou então os teus livros da escola são diferentes dos outros todos. . . . Estamos a falar numa época ANTES da 2ª Guerra Mundial! O ZERO ZERO está certo! O fascismo avançou célere entre as 1ª e 2ª Guerras! Depois do fim da 2ª Guerra, aí sim: tu tens razão - a Hungria, Jugoslávia mudaram os regimes para socialistas. E a Lituânia foi absorvida pela União Soviética, como despojo de guerra.
    Portanto, seria bom que tu reconhecesses o teu erro, Thunder.
    Desporto e Política
    2013-12-24 19h07m por jesualdo
    Parabéns ao ZeroZero por relembrar este acontecimento. Num sítio de futebol mostrar também um pouco da história mundial. O último comentário está correcto, eu como sou licenciado em Ciência Política, vejo-me obrigado a fazer essa correcção. De facto, no pós-guerra o fascismo instalou-se um pouco por toda a Europa a partir dos anos 20, mas a Jugoslávia virou comunista liderada por Tito, a Lituânia fazia parte da URSS desde o seu início, é um totalitarismo mas comunista e a Hungria tem ra...ler comentário completo »
    Thunder_PT
    2013-12-24 17h09m por Gomes89
    Estamos a falar do período pós PRIMEIRA Guerra Mundial e não pós SEGUNDA. . . Com a revolução Russa de 1917, a Russia perdeu a maior parte do seu territorio Europeu, dando independencia a Lituania, Letonia, Estonia, Finlandia. . . A Hungria e Jugoslavia tornaram-se ditaduras de extrema direita, apenas viraram comunistas com a ocupação soviética pós-1945.
    TH
    Fascismo?
    2013-12-24 16h45m por Thunder_PT
    "Nas décadas seguintes, o fantasma do fascismo avançou imparável na Europa, primeiro tomando o poder na Itália, depois em Portugal, Mais tarde na Hungria, Grécia, Lituânia, Alemanha, Jugoslávia, por fim na Espanha. . . "

    A Jugoslávia e a Hungria eram comunistas. A Lituânia fazia parta da União Soviética.
    Armistício de Natal 1914
    2013-12-24 16h42m por EduardoLouro
    Sim, foi verdade. OS que não acreditaram, são os mesmos que só queriam aniquilação! Os que pedem "honra" em combate, são os mesmos que jogaram futebol e trocaram prendas, e nunca aqueles que vociferavam ódio! - Isso sim: foi um exemplo quando o Homem quer, CONSEGUE! A Paz, quando defendida, consegue-se!
    Excelente lembrança, ZEROZERO!
    OM
    Restia de humanidade restaurada
    2013-12-24 12h37m por Omg21
    Acho muito bem que no meio de uma guerra horrivel, os soldados de ambas as partes se tenham lembrado que o natal é uma altura que nao pode ser esquecida sem ir para lados simbolicos, é uma altura de paz
    :)
    2012-12-24 17h02m por goncalo1993
    Que linda historia, claro que apenas a parte onde a guerra parou para se poder festejar o Natal, mas como sempre a Humanidade se envergonha a si própria, depois de milhares de homens terem feito um gesto tão lindo, no dia seguinte já estavam a se matar uns aos outros, incompreensível!
    [. . . ]
    2012-12-24 16h52m por KING_98_LFC
    isto que ta aqui escrito dei este ano nas aulas de historia lol, que seca, dei a 1ª e 2ª Guerra mundial
    desconhecia
    2012-12-24 14h19m por RFBMarques
    mto bem ZeroZero :)
    JO
    Sempre pensei
    2012-12-24 12h48m por JosephGoebbels
    que fosse mesmo so uma lenda, afinal parece que houve mesmo esse amisticio, a quadra natalicia tem sempre uma magia no ar. . .