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    Rivalidades
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    Guerra no Cairo: Al Ahly x Zamalek

    Texto por João Pedro Silveira
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    iO Dérbi do Cairo é antes de tudo mais o Dérbi do Egito, o «jogo dos jogos», um embate que pára uma cidade, uma nação e até o mundo árabe, pois a transmissão do clássico do futebol egípcio é acompanhada em direto por todo o mundo Árabe, de Casablanca ao Dubai...
     
    Para se perceber a dimensão desta rivalidade temos de conhecer a própria dimensão do Egito e do Cairo em particular e um pouco da história por trás dos dois clubes. O Cairo tem mais de dez milhões de habitantes, a sua área metropolitana tem cerca de vinte cinco milhões e meio. São dois Portugal e meio, só para se ter uma verdadeira dimensão dos números.

    Revolucionários versus...
     
    Pode afirmar-se que o futebol no mundo árabe começa com a fundação dos dois maiores clubes do Cairo, há mais de cem anos. Até aí o futebol era uma coisa incipiente, jogada por europeus radicados na região, em particular os ingleses. Convém recordar que no começo do século XX, a região ainda estava dividida pelas potências europeias e o Egito estava debaixo do jugo britânico, reduzido à condição de colónia, não obstante uma fachada de independência que tinha na monarquia local o seu rosto mais visível. 

    O primeiro dos dois clubes a nascer seria o Al-Ahly, a 24 de abril de 1907, fruto da vontade de um grupo que se começara a formar ainda em 1905 pela mão de Mustafa Kamil, um advogado que criara um clube para estudantes que não tinham acesso aos clubes das elites e dos ingleses.
     
    O novo clube esteve desde a primeira hora ligado às classes populares, assumindo um sentimento nacionalista e uma declarada oposição ao poder e aos ocupantes ingleses. Al-Ahly, que em árabe quer dizer «Nacional», tornava-se desde o primeiro momento num clube anti-imperialista e orgulhosamente nacionalista. Adotou o vermelho como cor, para lembrar a bandeira egípcia antes da ocupação inglesa e teria em Saad Zaghloul, um dos revoltosos de 1919, como um dos seus destacados dirigentes.

    Em 1925 o Al-Ahly bania os estrangeiros do clube, demarcando-se ainda mais dos seus rivais que tão boas relações detinham com os ingleses....
     
    ... Conservadores
     
    Quatro anos depois nascia o seu rival, que como convém nas histórias de rivalidades e desamores, tornou-se o clube preferido das elites, dos administradores coloniais e das forças do exército, ou seja, Zamalek x Al-Ahly tinha tudo para ser uma versão egípcia da «luta de classes» dentro das quatro linhas.
     
    Fundado por um advogado belga (George Marzbach) que trabalhava na empresa de elétricos do Cairo com o nome de Qasr El Nil, nome do local onde teve a primeira sede, o clube mudou mais tarde de nome para El Mokhtal, que seria depois substituído pelo nome do Rei Farouk, monarca egípcio à época.
     
    Terminada a Segunda Guerra Mundial os ingleses abandonaram o Egito ficando apenas a controlar a zona do Canal do Suez. O Rei Farouk tornava-se cada vez mais impopular e acabou por ser derrubado por um golpe militar liderado pelos militares e por Gamal Abdel Nasser. O clube do Rei Farouk mudou mais uma vez de denominação, batizando-se com o nome do bairro onde estava localizado: Zamalek. 

    A institucionalização do dérbi

    Com Nasser no poder o futebol tornou-se numa das ferramentas do governo para mostrar a força do renascido Egipto. Nasser tornou-se presidente honorário do «clube do povo» e ordenou a construção do «faraónico» Estádio Internacional do Cairo, com lotação para cem mil espetadores, o que o tornava no maior estádio do continente africano. 
     
    Contudo a derrota na Guerra dos Seis Dias em 1967 levou Nasser a repensar o papel do futebol no país. O governo considerou que o futebol era uma distração para o povo e uma má influência ocidental, o que levou Nasser a banir a prática do mesmo, numa proibição que duraria até à sua morte em 1970.
     
    Seria o seu sucessor, Anwar Sadat, que faria a paz com Israel, nos famosos acordos de Camp David em 1978, e devolveria a total liberdade ao futebol do país dos faraós, que ao longo da década vira o seu campeonato ser interrompido mais do que uma vez.
     
    Sadat, tal como Nasser antes dele e Hosni Mubarak mais tarde era um adepto do Al-Ahly. A velha tradição do tempo colonial de que o Al-Ahly era o clube do povo e contra o sistema e que o Zamalek era o clube da burguesia e de braço dado com o regime perdera a sua razão de ser, com ambos os clubes a deterem adeptos entre ricos e pobres, e com o Al-Ahly a estar bem mais próximo do poder que o seu velho rival.

    Violência sem par
     
    A rivalidade entre os dois clubes ganhou uma dimensão violenta que não detinha nas primeiras décadas. A rivalidade atingiu tal dimensão que passou a ser conhecido como «o mais perigoso dos dérbis» com direito a constantes escaramuças, batalhas campais, muitos feridos e várias mortes a lamentar ao longo dos anos.
     
    Por todo o Egito o país divide-se pelos dois clubes mais representativos da capital. Se o Al-Ahly leva vantagem, o Zamalek mantém uma falange de apoio capaz de fazer inveja aos maiores clubes da Europa, resultado de um dos países mais populosos de África, com mais de oitenta milhões de habitantes, onde a larga maioria é loucamente apaixonada pelos seus clubes de futebol.
     
    Depois das proibições da década de 60 e 70 o dérbi viveu momentos complicados quando o governo decretou que os confrontos entre os dois grandes do Cairo passariam a ser jogados sem em local neutro.
     
    Nunca mais as duas torcidas puderam fazer valer a força dos seus estádios, mas isso não bastou para fazer regredir a força da violência no "encontro mortal do Cairo" como alguma imprensa estrangeira já alcunhou o dérbi da cidade banhada pelo Nilo. 
     
    A política dentro das quatro linhas
     
    A emergência dos grupos radicais de ultras nos dois clubes levaram a que as autoridades decretassem que o dérbi fosse jogado à porta fechada, castigo que também se alastrou aos restantes clubes depois da tragédia de Port Said. 
     
    As tensões políticas depois da Revolução Árabe e da queda do regime de Mubarak encontraram terreno fértil no mundo semi-clandestino das claques de futebol. O Al-Ahly x Zamalek ganhou novas conotações políticas e as autoridades ficaram alertadas para o perigo das grandes concentrações de pessoas, possivelmente adversárias do regime instaurado pelos militares depois do afastamento do governo afeto à Irmandade Islâmica. 
     
    Dentro do campo a rivalidade também é dura pois raro é o encontro que não termina com expulsões e castigos para treinadores e dirigentes. A superioridade histórica do Al-Ahly, mais do dobro dos títulos nacionais e internacionais que o rival, mais do dobro das vitórias que o Zamalek, transformam o "combate" na velha e tradicional rivalidade que se encontra em todo o mundo entre o clube por norma vencedor, mais próximo do poder, que é constantemente desafiado pelo velho rival que capta assim a paixão daqueles que se dizem contra o "sistema".
     
    Rivalidade com história
     
    Se é verdade que o Al-Ahly venceu quase o dobro das vezes que o seu adversário conseguiu batê-lo, não é menos verdade que as duas maiores goleadas no dérbi - ambas por 6x0 - foram conseguidas pelo Zamalek nos anos 40.
     
    A nível internacional o Al-Ahly é o mais premiado clube de África, considerado o clube africano do século XX pela Confederação Africana de Futebol, o que fez do gigante do Cairo numa versão africana do Real Madrid, tendo conquistado até 2013 por oito vezes a maior competição continental, feito que o Zamalek conseguiu por cinco vezes em igual período.
     
    Durante anos o Zamalek fora melhor sucedido internacionalmente que o vizinho e rival mas tudo mudaria no novo milénio com a sucessão de títulos dos vermelhos e brancos, pelas mãos de Manuel José, um treinador que ficará para sempre ligado à história do clube e do dérbi que teve o seu primeiro embate em 1917, quando o Al-Ahly bateu o então Mokhtal por 1x0 no dia 9 de fevereiro. A resposta chegaria quase um mês depois quando o rival bateu o Al-Ahly pela primeira vez. 

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