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    O Muro de Berlim e as duas Alemanhas

    Texto por João Pedro Silveira
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    Quem passeia pelo campus do Westminster College, em Fulton, Missouri, não imagina o simbolismo do local. Seria no Gymnasium desta centenária instituição que Sir Winston Churchill proferiu um dos mais históricos discursos do século XX. Perante uma audiência atenta, o ex-locatário de Downing Street, um pouco à imagem de um Profeta do Antigo Testamento, alertou a evidência para um futuro próximo, que o mundo parecia não vislumbrar: 

    «De Estetino, no Báltico, até Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente. Atrás dessa linha estão todas as capitais dos antigos Estados da Europa Central e Oriental. Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sófia; todas essas cidades famosas e as populações em torno delas estão no que devo chamar de esfera soviética, e todas estão sujeitas, de uma forma ou de outra, não somente à influência soviética mas também a fortes, e em certos casos crescentes, medidas de controlo emitidas de Moscovo.»

    Este discurso, proferido na distante pacatez da América do Norte, dava o «pontapé de saída» da «Guerra Fria». Durante mais de 40 anos, dois blocos permaneceram frente a frente, mas de costas voltadas. A "Cortina de Ferro" deu lugar a uma cortina de arames farpados e barreiras... E em Berlim, a mais infame das vedações, o famoso Muro, que separava ossis de wessis, calão para orientais e ocidentais. De um lado ficava a BDR - Bundesrepublik Deutschland (RFA), do outro a DDR - Deutsche Demokratische Republik (RDA) e assim seria até quase ao fim do século.

    Tensão crescente

    A história do Muro, como tantas histórias da segunda metade do século XX, começou com o fim da Segunda Guerra Mundial e a partilha da Alemanha, consequência da Conferência de Potsdam. Os quatro vencedores, Estados Unidos da América, Grã-Bretanha, França e União Soviética, dividiam a derrotada Alemanha em quatro zonas de influência, assim como a sua capital, Berlim.

    @Getty / Keystone
    Em 1948 surgiu a primeira crise, o famoso Bloqueio de Berlim, quando Estaline impôs um rigoroso bloqueio terrestre à parte Oriental de Berlim, cercada por todos os lados pela Alemanha ocupada pelos soviéticos. 

    Uma ponte aérea alimentou Berlim Ocidental, até os soviéticos abdicarem do bloqueio. Mas o extremar de posições estava tomado. O Ocidente reagiu e as três zonas ocupadas por americanos, ingleses e franceses tornaram-se na RFA, com capital em Bona e que em breve acedia à Organização do Tratado Atlântico Norte (NATO). 

    Os soviéticos reagiram e transformaram a sua zona de ocupação na RDA, com capital em Berlim Leste. Nasciam as duas Alemanhas, Berlim estava dividida em dois. Em novembro de 1958 o líder soviético Nikita Khrushchev lançou um ultimato às potências ocidentais para abandonarem Berlim Ocidental em seis meses. Os aliados não cederam e Berlim continuou dividida. 

    Como consequência da crise, as autoridades de Berlim Leste deram começo à construção de uma barreira que separasse Berlim Ocidental da RDA. Quase dois anos depois de se ter iniciado a construção do Muro, o presidente norte-americano J.F. Kennedy visitou Berlim Ocidental e ao lado do PM alemão federal Willy Brandt, proferiu outro famoso discurso da história da cidade banhada pelo Spree: «ich bin ein berliner!»

    Mais de vinte anos mais tarde, outro presidente norte-americano, Ronald Reggan, desafiou o seu homólogo soviético Mikhail Gorbachev com um rotundo: «Mr. Gorbachev, tear down this wall!»

    1989: o fim da História

    Não seria propriamente Mikhail Gorbachev a pôr fim ao muro, mas o líder soviético teria um papel fundamental na queda do mesmo, pois convém lembrar que nada acontecia em Berlim Leste sem a autorização ou com a oposição de Moscovo.

    Nem em Berlim Leste, nem em nenhum dos membros do Pacto de Varsóvia. Por isso, quando em agosto de 1989, a Hungria começou a remover os obstáculos na sua fronteira com a Áustria, 13 mil alemães de leste atravessaram a fronteira austro-húngara com o objetivo de fugir para oeste.

    @Getty / Waterman
    As autoridades húngaras voltaram a fechar as fronteiras com a Áustria, pensaram impedir a entrada de mais alemães de leste no país e fizeram recuar os milhares de ossis para Budapeste, onde estes procuram refúgio na embaixada da Alemanha Federal.

    Ao mesmo tempo que as autoridades alemãs de Leste negavam as autorizações para os seus nacionais viajarem para a Hungria, milhares de alemães orientais rumavam à Checoslováquia, procurando passar para a Áustria e RFA. 

    As manifestações das segundas-feiras

    Em setembro começou a contestação pública ao regime. Em Lípsia, surgiam as «Montagsdemonstrationen» (manifestações das segundas-feiras), o passo seguinte para a queda da RDA. A princípio tímidas, estas reuniões tinham lugar às segundas-feiras à tarde, terminando com uma oração na Igreja de São Nicolau em Lípsia.

    Com o grito «Wir sind das Volk !», «nós somos o povo!», repetidamente a autoridade do governo de Berlim Leste era contestado, semana após semana. Perante a passividade do governo, a palavra de ordem passa a ser «Wir wollen raus!», os alemães de leste querem liberdade para sair do país.

    A 18 de outubro, Erich Honecker, o histórico líder da RDA que no começo do ano garantira que o muro ficaria de pé por mais cinquenta ou cem anos, abandona o poder e cede o seu lugar a Egon Krenz, o homem presidiria ao fim do país. 

    A tensão cresceu até que a 9 de novembro o governo de Berlim Leste deu autorização para os cidadãos nacionais visitarem o ocidente. Dos dois lados do Muro multidões reuniram-se para celebrar. Milhares subiram para cima do Muro e começaram a festejar, enquanto outros tantos milhares se dedicavam à destruição da estrutura, num ato simbólico que marcou a história da Alemanha e do Mundo.

    @Getty / Steve Eason
    O Muro só seria efetivamente desmantelado bem mais tarde pelas autoridades alemãs, mas deixou de ser a barreira física de outrora. O ano de 1990 marcou o avanço do processo de reunificação até à sua conclusão 3 de outubro de 1990. Em menos de um ano a RDA acompanhava o Muro e desaparecia da história...

    Meses antes a RFA conquistara o Campeonato do Mundo em Itália e por toda a Alemanha de Leste a Oeste a vitória da Mannschaft foi efusivamente festejada. A vitória era de todos. 

    Duas Alemanhas dentro do campo

    O sorteio para os grupos da fase final do Euro 92 teve lugar a 2 de fevereiro de 1990, em Estocolmo, na Suécia. Por essa altura o Muro já caíra e os dois governos já haviam começado a tratar do processo político que conduziria à unificação. 

    Indiferente ao rumo político, a UEFA organizou o sorteio e a RDA participou ao lado dos outros países europeus. Curiosidades do destino, os alemães de leste ficaram colocados no grupo 5 ao lado dos seus irmãos ocidentais, assim como com o País de Gales, o Luxemburgo e a Bélgica, que seria o último adversário que a RDA defrontou num campo de futebol.

    Se as duas equipas se têm chegado a defrontar, não seria a primeira vez que tal acontecia em jogos oficiais. Antes de 1992 o historial de encontros entre as duas Alemanhas estava muito desequilibrado, mas o que poucos sabem é que estava desequilibrado para o lado da RDA. 

    Em 1972 os de leste haviam batido a RFA em Munique durante a segunda fase dos Jogos Olímpicos, acabando por avançar para a conquista da medalha de bronze. Dois anos volvidos a RDA voltou a visitar a Alemanha Ocidental, desta feita para jogar o Campeonato do Mundo. Em Hamburgo, para surpresa de todos, os alemães de leste venceram por 0x1 e deixaram os anfitriões à beira de um ataque de nervos. 

    A Nationalelf recuperou do choque e acabaria por vencer a competição batendo os holandeses na final em Munique. A RDA levou para casa a memória de ter batido os seus "irmãos".

    @Getty / Carsten Koall
    Não houve mais confrontos futebolísticos entre os dois irmãos. A RDA não era - e nunca foi - uma potência futebolística, mas era a seguir aos EUA e a URSS a maior potência olímpica do Mundo, com excelentes resultados na natação, atletismo ou ginástica. 

    Dentro das quatro linhas a RDA só garantiu uma qualificação para um Mundial e nunca se qualificou para um Campeonato da Europa. O Magdeburgo foi o único clube alemão oriental a vencer uma competição europeia, precisamente em 1974, batendo o Milan na final da Taça dos Vencedores das Taças. 

    A Ditadura do Dynamo

    Entre as diversas vicissitudes do futebol de leste, desde o falso profissionalismo, às limitações técnicas e de transferências, destacava-se o controlo absurdo que as autoridades não desportivas detinham sobre os clubes e a competição.

    Como era costume nos países para lá da cortina de ferro, o futebol da RDA estava nas mãos dos diversos departamentos de estado, com os vários clubes a serem pertença dos ministérios, da polícia, do exército ou da odiosa Stasi, a famosa polícia política do regime. 

    O Dynamo de Berlim era pertença da Stasi e em 1978 o seu diretor Erich Mielke visitou o balneário onde o campeão Dynamo Dresden festejava o título para avisar os seus dirigentes que o período de glória dos Dresden chegara ao fim. "Agora é a vez de Berlim", deixando bem claro que a Stasi queria um Dynamo de Berlim campeão.

    @Getty / Sean Gallup
    Durante dez épocas o futebol alemão de Leste viveu uma ditadura sem paralelo no futebol europeu, com o clube da capital a conquistar dez títulos consecutivos, reforçando-se todas as épocas com os melhores jogadores dos adversários e resolvendo os jogos mais complicados com arbitragens absolutamente escandalosas. 

    Fora do campo, e em surdina, os jogadores do Dynamo eram conhecidos pelos adversários como os elf schweine (onze porcos) e o clube era genuinamente odiado por tudo o que representava.

    Com o passar das épocas as autoridades já nem se preocupavam em manter uma aparência de legalidade e os roubos eram de tal maneira que a liga perdeu adeptos a um ritmo sem paralelo em mais nenhum lugar do mundo.

    Reunificação desigual

    Terminado o período de domínio do Dynamo de Berlim o clube mudou de nome para FC Berlim, enquanto o Dynamo, mas de Dresden, recuperava o título onze anos depois de ter sido ameaçado com o fim do seu domínio.

    Na última edição da liga alemã de Leste seria o Hansa Rostock a ganhar a prova pela primeira vez, garantindo assim com o Dynamo de Dresden (segundo classificado) a presença na reunificada Bundesliga.

    Desde a primeira hora que os clubes ocidentais dominaram a prova reunificada e durante anos as equipas de leste foram perdendo a pouca importância que detinham na primeira metade dos anos 90. Nos anos seguintes a presença de clubes de leste no primeiro escalão tornar-se ia rara até ao ponto de nenhum estar presente. Clubes como o Dynamo Dresden, o VfB Leipzig, o Hansa Rostock ou o Energie Cottbus - clube de que é adepta Angela Merkel, também ela uma alemã de Leste - foram a exceção numa avalanche que quase acabou com os principais clubes ex-RDA ou que os reduziu a uma condição menor. 

    O ex-Dynamo de Berlim ficou colocado no terceiro escalão e nunca mais recuperou a dimensão que tinha antes da queda do Muro. A seleção também desapareceu depois de um jogo em Bruxelas que se transformou num amigável. A DDR venceu os belgas por 0x2 e desapareceu.

    Nessa equipa brilhava Matthias Sammer que seria o capitão que conduziu a Alemanha ao seu primeiro título unificado, o Euro 96. Seria também a estrela e a referência do Dortmund que conquistou a Europa no ano seguinte. 

    Ao lado dele brilharam outros jogadores de leste na Mannschaft. Durante os anos seguintes nomes como Ulf Kirsten, Andreas Thom, Thomas Doll, Oliver Neuville, Marko Rehmer, Rene Schneider, Stefen Beinlich, Tim Borowski, René Adler, Robert Enke, Marcel Schmelzer, Jens Jeremies, Carsten Jancker, Thomas Linke e o mais destacado de todos, Michael Ballack, mostraram ao mundo a força do futebol da RDA.

    RB Leipzig, a nova cara do Leste @Getty / Lars Baron
    Durante mundiais e europeus, o Leste contribuiu sempre com um sexto a um terço da seleção, mas a Alemanha tardava em conseguir a vitória. Esta só chegou em 2014, no Brasil, onde curiosamente a Alemanha só contou com um jogador nascido na ex-RDA: Toni Kroos, que nasceu a 4 de janeiro de 1990 em Greifswald, já depois do muro cair, mas ainda na antiga República Democrática Alemã.

    Já a Bundesliga seguiu muitos anos sem qualquer representação de Leste, até que em 2016 essa chegou em peso, na forma de um poderoso RB Leipzig.

    Odiado por todo o país devido à ligação à Red Bull, negando os ideais do futebol germânico, este clube percorreu toda a pirâmide rapidamente e anunciou-se no primeiro escalão com um segundo lugar e qualificação direta para a Liga dos Campeões. Nunca mais largou os lugares cimeiros, conquistando troféus como a Taça e a Supertaça da Alemanha.

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