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    México 1986
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    Portugal: do sonho ao pesadelo

    Texto por Luís Rocha Rodrigues
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    «A resposta de Portugal, Carlos Manuel. Fernando Gomes vai do lado direito, Mário Jorge também um pouco atrás, o remate ao la... golo! gooolo de Portugal. Golo fabuloso de Carlos Manuel! Um verdadeiro espetáculo!». Em pleno Neckarstadion (Estugarda), a voz telefónica de Manuel da Costa tremelicava entre a emoção e a surpresa de um lance que registava uma viagem com que quase ninguém contava. O que não seria propriamente benéfico, como se poderá perceber pelo atribulado trajeto que Diamantino nos ajudou a descobrir até à afamada Saltillo.

    qNo primeiro treino deparámo-nos com um campo muito inclinado, era numa subida, tínhamos que fazer um esforço enormíssimo para chegar à baliza que estava mais alta, a bola rolava sozinha para baixo... Uma seleção que vai participar num Mundial e ter estas condições era impensável.
    Depois do terceiro lugar alcançado no Euro 84 em França, aquela geração preparava-se para ficar outra vez de fora de uma fase final. A qualificação até começou bem, com uma vitória na Suécia (0x1) e contra a Checoslováquia (2x1), só que descambou logo depois, tanto que, na ida para a última jornada, Portugal precisava de uma inesperada derrota dos suecos em terreno checo e, depois, de ir ganhar a casa da poderosíssima, mas já qualificada, República Federal da Alemanha.

    José Torres era o selecionador e, aos jornalistas, proferia a famosa frase: «Deixem-me sonhar...». A generalidade dos portugueses, habituados à traição da calculadora, não acreditavam. Porém, ao saírem do autocarro na Alemanha, os jogadores ficaram a saber que a Checoslováquia tinha ganho por 2x1.

    «Era mais natural, nessa altura, termos mais dificuldades em chegar às fases finais porque não havia Azerbeijões, Arménias, Lituânias... Os grupos eram muito fortes. Sabíamos que as outras seleções tinham muita qualidade. Quando o Carlos marcou o golo, penso que todos pensámos que seria possível, porque estar lá dentro é diferente, acredita-se mais», começou por nos dizer Diamantino sobre aquela inesquecível vitória por 0x1, ele que não teve dúvidas em atribuir adjetivos à qualidade daquela geração, quando questionado sobre o que lhe vinha inicialmente à memória assim que «México 86» era pronunciado.

    «O que me vem à cabeça é que aquela era uma grande geração de jogadores, se calhar uma das melhores de sempre do futebol português. A haver publicidade e a organização que hoje o futebol tem, aquela podia ter sido considerada uma Geração de Ouro. Já tínhamos vindo de um Europeu em que, novamente com um pouco mais de organização, poderíamos ter sido mais felizes, não tivessem acontecido situações como os quatro selecionadores em simultâneo», relembrou.

    O golo de Carlos Manuel que colocou Portugal no Mundial do México
    A título de exemplo, dos 22 chamados, não constavam os nomes de Chalana (lesionado), Jordão (sem jogar a época toda por atritos com Manuel José no Sporting) ou Veloso (apanhado com doping). E não só: «Em quantidade e em qualidade, era uma grande seleção, na qual até o Manuel Fernandes, que tinha sido o melhor marcador do campeonato, ficou de fora».

    Uma aventura inclinada para o abismo

    20 anos depois, nova presença num Campeonato do Mundo. José Torres tinha estado em Inglaterra em 1966 e, portanto, não pisava terreno desconhecido, muito embora os tempos fossem outros e o país anfitrião também. A Federação viajou atempadamente para o México, afim de acertar a logística que receberia a comitiva, só que não o terá feito com as melhores garantias e, acima de tudo, com os melhores cuidados.

    «Primeiro, a viagem foram 24 horas, não é como hoje. Fomos daqui para a Alemanha (uma escala sem justificação, porque nem sequer ficava mais barato), da Alemanha para Dallas, de Dallas para a Cidade do Mexico, depois para Saltillo. Ainda assim, ultrapassámos com alguma facilidade, porque tínhamos todo o entusiasmo de ir jogar um Mundial», contou Diamantino, em conversa com o zerozero.pt.

    «O hotel, mesmo não sendo paradisíaco, oferecia grandes condições, era excelente. Só tinha a dificuldade de ficar perto de uma auto-estrada num sítio quase deserto», continuou, mesmo sem referir que, do outro lado da estrada estava a seleção inglesa, treinada então por Bobby Robson, que era a primeira adversária de Portugal e que não permitia que ninguém furasse as barreiras de segurança - os jornalistas ingleses, por exemplo, repousavam do lado português... No mínimo, inconveniente.

    qA gota de água foi quando o representante da Adidas de Portugal chegou ao México e perguntou a um de nós se tínhamos recebido o dinheiro da Adidas internacional que nos estava destinado... E nós sem saber de nada, o dinheiro nunca chegou a aparecer
    «O problema foi mesmo nas condições das infra-estruturas para podermos fazer os treinos e tudo o resto. Por exemplo, no primeiro treino deparámo-nos com um campo muito inclinado, era numa subida, tínhamos que fazer um esforço enormíssimo para chegar à baliza que estava mais alta, a bola rolava sozinha para baixo... Uma seleção que vai participar num Mundial e ter estas condições era impensável» criticou Diamantino, subindo o tom à medida que rebuscava na memória pormenores fabulosos.

    «Além disso, os jogos amigáveis que se marcaram eram contra equipas que já estavam de férias e que não apareciam. Depois tínhamos que jogar contra empregados dos hotéis, cozinheiros, e passávamos a vida nisto. Perdeu-se uma grande oportunidade de fazer um brilharete», acrescentou.

    Ao nosso desafio de escolher uma palavra para caracterizar o cenário, Diamantino escolheu «lástima» e não teve dúvidas na atribuição de culpas: «A culpa foi única e exclusivamente da Federação, que pagou sem escolher aquilo que era melhor para a equipa».

    Revolta e rebelião, ainda sem a bola começar a rolar

    Tudo saía ao contrário do que se esperava. Além dos exemplos já dados, houve ainda a ocasião em que os jogadores tiveram que se equipar num balneário municipal (público) para um suposto jogo que não existiu, um 'arraial de porrada' dado por um grupo de vaqueiros a uma dezena de polícias à porta do hotel, um roubo de um elemento oficial da organização do Mundial, que carregou os montantes que jogadores e dirigentes lhe confiaram para ir fazer compras além da fronteira, aos Estados Unidos, e que não mais voltou... Enfim, um sem-número de casos dignos de um filme.

    Mas Saltillo não se esgotava aí, havia mais. Se, no início, a segurança do hotel era rígida, depois passou a ser vulnerável e a fazer pairar o cheiro a erva, segundo relatos da altura. Se não havia equipa profissional com quem jogar, a seleção do Chile ofereceu-se mediante pagamento de 1200 contos, só que a FPF disse... não ter dinheiro para pagar. Além disso, as famosas 'chicas de Saltillo' descobriram no português o charme de alguém novo na região, divertido e com a abertura que o inglês não demonstrava. Ficaram famosas as supostas festas que aconteciam na discoteca do hotel, numa fase em que já havia muito mais do que desagrado com as condições organizacionais oferecidas aos jogadores. O cúmulo chegou depois.

    Diamantino assistiu Carlos Manuel para o golo que derrotou a Inglaterra
    «Havia jogadores com um certo estatuto, como o Bento e o Damas, que já faleceram, e o Gomes, que eram capitães nas respetivas equipas e que eram excelentes colegas, unindo sempre o grupo. Eram eles que tinham a responsabilidade de nos representar, mas aquilo que despoletou toda aquela situação, apesar das muitas mentiras que vieram cá para fora e que foram escritas sem fundamento, foi a questão dos prémios. A desorganização total que tinha existido no Europeu, pensámos nós que poderia ter servido de exemplo. Os capitães tentaram resolver tudo ainda cá em Lisboa, antes de irmos para o México, e foi-lhes sempre prometido que tudo ficaria tratado até à partida, o que não se verificou», frisou Diamantino, totalmente crente nas razões que levaram os jogadores a ameaçarem entrar em greve.

    «A gota de água foi quando o representante da Adidas de Portugal chegou ao México e perguntou a um de nós se tínhamos recebido o dinheiro da Adidas internacional que nos estava destinado, e nós sem saber de nada, o dinheiro nunca chegou a aparecer», disse, ao zerozero.pt.

    O dr. Silva Resende, presidente da FPF, estava na Cidade do México e era o coordenador Amândio de Carvalho quem, em Saltillo, ouvia a indignação dos jogadores. A figura principal recusava-se a tentar o entendimento e sucederam-me várias reivindicações e comunicados, para espanto de todo um mundo que olhava com perplexidade para o motel La Torre e toda a rebaldaria que ia na comitiva portuguesa.

    «Como maior responsável da FPF, ele e o senhor César Grácio era quem tinha a obrigação de tentar resolver a situação, mas não. Preferia, à boa maneira portuguesa na altura, estar nos hotéis e nas festas na Cidade do México, do que deslocar-se à cidade onde estava a sua seleção. Com uma conversa tudo se teria resolvido, mas desprezaram-nos, o que revoltou ainda mais depois das situações de desorganização», declarou Diamantino, antes de ser questionado sobre a forma como viam a divisão que havia em Portugal com a situação - as histórias que chegavam eram contraditórias e a própria classe política dividia-se na forma como via o caso.

    «As coisas não são como hoje, não abríamos o computador ou pegávamos no telemóvel para estar a par de tudo, portanto claro que não tínhamos bem a noção de como as coisas eram vistas em Portugal, muito menos das mentiras que eram escritas. Chegou-se ao cúmulo de um presidente de um clube [Vitória de Guimarães] dizer que, se fosse ele a mandar, fazia regressar toda a equipa e disponibilizaria a dele para ir para o México de borla, o que só soubemos ao chegar cá. Esqueceu-se o dr. Pimenta Machado que 14 ou 15 jogadores dele eram brasileiros», relembrou.

    A derrota com Marrocos, que fez a seleção voltar sem brilho
     A vitória, a lesão, a derrota

    Quase sem se dar por isso, o Mundial tinha começado. O grupo tinha a fortíssima Inglaterra, a segura Polónia e a imprevisível seleção de Marrocos, com os jogos por esta ordem. Ora, depois de quase um mês anedótico e que tinha tido tudo menos preparação, a Inglaterra de Bobby Robson não seria o adversário mais aconselhado. Engano. 1x0, com Diamantino a assistir Carlos Manuel, a 15 minutos do fim, para o tento de um triunfo que terá sido de revolta do grupo português.

    «As vitórias são sempre boas, independentemente das consequências que trazem. As pessoas talvez não esperassem, mas nós, sabendo da nossa qualidade, acreditámos sempre em vencer, mesmo sabendo que a Inglaterra era muito difícil de bater naquela altura», considerou Diamantino.

    Carlos Manuel dizia que aquela tinha sido «a vitória da dignidade dos jogadores portugueses» e o selecionador José Torres, em lágrimas, dizia a A Bola: «Há no céu qualquer coisinha que me ajuda quando caio». Mas seria a última vez que tal «coisinha» o amparava.

    «Tivemos uma situação que marcou muito o grupo, que foi a lesão do Bento [que o fez terminar a carreira]. Antes do jogo com a Polónia, ele estava a jogar no treino a avançado e, ao saltar com o José António para disputar numa bola, caiu mal, meteu o pé num buraco e partiu a perna. Aquilo abalou-nos bastante. Não que quem o substituísse não tivesse qualidade, porque o Damas tinha-a, mas foi o impacto que aquilo teve na equipa. Associaram-se as derrotas a tudo, menos a isso ou ao facto de os adversários serem muito bons», continuou Diamantino, titular na «estranha» derrota com a Polónia (1x0), com golo de Smolarek.

    qPerdeu-se uma grande oportunidade de fazer um brilharete
    Foi o número 17 português quem foi o sacrificado no onze no terceiro jogo, no qual os jogadores não saberiam que passavam juntamente com Marrocos caso empatassem a dois golos. Para o seu lugar entrou Paulo Futre, que se tinha queixado publicamente de ser suplente, dizendo a A Bola: «Mas qual arma secreta, qual quê, o que eu quero é jogar de início e ainda não tive essa oportunidade».

    «Fui o sacrificado no jogo contra Marrocos para que o Futre jogasse. Isso foi imposto por alguém que nem estava no México, mas que fez valer a sua influência, isto independentemente da grande qualidade e do grande jogador que já na altura o Futre era», declarou-nos Diamantino, que entrou para marcar o tento português e reduzir para um 3x1 com contornos de humilhação.

    As malas faziam-se para um regresso amargo e atribulado a Portugal: «Aquilo culminou num pseudo-inquérito aos jogadores, que nada tem a ver com o direito à justiça e à liberdade, o qual resultou no afastamento de, salvo erro, oito deles, onde eu estava incluído. Mais tarde veio a perceber-se que tudo tinha sido uma cabala contra nós e voltámos a ser admitidos na seleção, embora eu e o Carlos Manuel nos tenhamos recusado a isso, porque não víamos lógica em voltar a jogar pela seleção com aquela direção», defendeu, antes de finalizar numa comparação com outras situações.

    «Hoje sabe-se que existiram coisas muito mais graves que aconteceram na seleção portuguesa noutras alturas e que pouco se falou. Saltillo foi um claro exemplo de completa desorganzação». Uma desorganização que poderá ter 'queimado' uma geração, lição que talvez não tenha sido bem absorvida para a participação seguinte de Portugal num Campeonato do Mundo...

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