No Desporto, e com particular destaque no Futebol, “o que hoje é verdade amanhã é mentira”, todos o sabemos… e que a Justiça é um conceito abstrato, também. Então, a combinação das duas tem tudo para correr mal. E o que constato regularmente é que, entre nós, corre mesmo mal.
O quotidiano do nosso Desporto, em geral, e do nosso Futebol em particular, está carregado de situações, dentro e fora das quatro linhas, de maior ou menor gravidade, que nos devem levar a pensar seriamente se queremos ou não fazer parte, enquanto adeptos e consumidores, de um Desporto e um Futebol assim. Se tudo o que temos visto nas últimas semanas acontece e as únicas consequências são uns comunicados, umas declarações, umas publicações no Facebook, então algo está demasiado errado. Perante este cenário, quem não se puser de fora, é porque está confortável dentro.
O objetivo da Justiça é modelar comportamentos para manter a ordem. Através da punição de comportamentos incorretos, procura-se uma aprendizagem social que deve levar as pessoas a, por não quererem tais punições, evitar esses comportamentos. Para que isto aconteça, importa compreender estes quatro pontos: o primeiro é o comportamento em si; o segundo, é o impacto desse comportamento no outro ou no contexto; o terceiro, é a punição aplicada ao comportamento; o quarto, e último, é o momento de aplicação dessa punição.
O que hoje nos rodeia ao nível da Justiça Desportiva é tudo menos aquilo para que foi criada.
Se olharmos para os casos mais recentes e polémicos que todos os dias são difundidos, de forma repetida e incendiária por alguns meios de Comunicação Social, quer tenham acontecido dentro ou fora de campo, durante as competições ou nos interregnos das mesmas, percebemos o seguinte: há repetidamente comportamentos lamentáveis e inqualificáveis; esses comportamentos têm impactos marcadamente negativos nos outros, no contexto, no decorrer da competição e nos seus resultados; as punições aplicadas são nulas ou inexistentes; quando existem, essas punições são, em regra, aplicadas fora de tempo. Ou seja, o crime ainda compensa, mesmo numa época das nossas vidas em que tudo é filmado e escrutinado, frame a frame.
A justiça é, ainda hoje, representada por uma figura decorada com três elementos: uma fita que tapa os olhos, representando a cegueira; uma balança, que representa o equilíbrio na ponderação das decisões; uma espada, que simboliza a força para aplicar as punições.
A cegueira recorda-nos o quão importante é o comportamento a julgar e não a pessoa que o praticou, seja homem ou mulher, rico ou pobre, novo ou velho. A Justiça não deve ser cega mas à sua luz, todos são iguais e julgados pelas mesmas leis. No Futebol Português, os mesmos comportamentos são julgados pelas mesmas leis, independentemente das pessoas, dos seus clubes e das suas influências?
A balança, símbolo da ponderação, traz à justiça o sentido de equilíbrio, procurando pesar nos seus pratos os comportamentos e as atenuantes, as perdas e os ganhos, das partes envolvidas. No fundo, e à luz dos critérios, aplicar o conceito de sensatez. Há, no Futebol Português, equilíbrio, ponderação e sensatez na aplicação da Justiça?
A espada reproduz o vigor e a força necessários para aplicar as medidas necessárias à Justiça. Não se maneja uma espada sem essa convicção. Não basta estarem escritas as leis e os regulamentos. A Justiça faz-se aplicando de forma destemida e determinada as medidas tomadas, aplicando sanções e consequências. No Futebol Português, os regulamentos são aplicados com convicção e firmeza?
A Justiça sem a fita nos olhos é incoerente, pois dá a pessoas diferentes com comportamentos iguais, medidas diferentes. A Justiça sem a balança é força bruta e irracional, um poder onde manda quem pode e obedece quem deve. A Justiça sem a espada é a fraqueza de saber que se deveria fazer algo e não há a convicção necessária para o fazer. Cada um dos elementos, cegueira, balança e espada, deve completar o outro para que a justiça seja o que se pretende dela: justa.
Porém, como já dizia o filósofo Sócrates na Grécia Antiga, “a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte.”
Não se confunda aplicar a Justiça com a aplicação do Poder de executar ou ignorar o que mais interessa. Os organismos que gerem a Justiça Desportiva em Portugal têm a obrigação moral e funcional de mudar este estado de sítio, nomeadamente no que diz respeito ao Futebol onde tudo é inflamado, e mais ainda, no que diz respeito à rivalidade desmedida entre os clubes grandes, os seus dirigentes, adeptos e claques.
Não precisamos de ir longe para encontrar diferenças abismais: no dia 8 de abril, em Málaga, Neymar foi expulso por acumulação de amarelos e, depois disso, teve um comportamento antidesportivo, aplaudindo ironicamente o quarto árbitro do jogo; três dias depois, a 11 de abril, o Comité de Competições da Federação Espanhola de Futebol suspendeu por três jogos o avançado, um jogo pela expulsão e mais dois pelo comportamento antidesportivo.
Entre nós, há agressões evidentes que são punidas com meses de atraso, já em épocas diferentes, ou que passam impunes porque não se consegue medir a intensidade do contacto.
A diferença é demasiado grande. Há comportamentos demasiado errados. Há demasiada impunidade.
Repito: acontece entre nós.
Termino: quem não se puser de fora, é porque está confortável dentro.