Os dias são dolorosos. Demasiado longos para quem tem fome e frio. Do Metro de Londres para os recantos da Abadia de Westminster, dos jardins de Hyde Park para as margens sujas do Tamisa, pouco ou nada muda na existência de Paul.
O cabelo é longo, desgrenhado, a camisa grunge quadriculada, os jeans desbotados, a manta pesada a aconchegar os pés frios. Paul fala com quem passa, aceita a esmola possível, alterna um estado de semi-consciência com o dormitar enroscado em cartões velhos.
Nascido em 1963 na cidade de Cardiff, País de Gales, Paul cresceu na quinta dos pais e em 1980 acompanhou-os numa vida nova idealizada no Canadá. Toronto mostrou-lhe o soccer e possibilidades interessantes na cena internacional. Seis anos depois de chegar à América do Norte, o galês foi convocado para o icónico México-86, o Mundial azteca.
Nos registos do zerozero, vemos que Paul James foi titular nos três jogos feitos pelo Canadá: 81 minutos contra a França de Platini e Tigana, 53 frente à Hungria e mais 64 diante da União Soviética.
36 anos depois, o que faz este antigo futebolista, galês e internacional canadiano, nas londrinas e desumanas ruas? Numa longa reportagem do Daily Mail, o antigo médio expia os demónios e desabafa a «brutalidade» que o acompanha desde 1998, ano em que se entregou à «maldita cocaína».
Não são raras as histórias de antigos futebolistas caídos em desgraça. Paul Gascoigne é um dos exemplos mais famosos, mas não é preciso ir tanto atrás para recordar os graves problemas de Jermaine Pennant, também no Reino Unido. Em Portugal, Vítor Baptista continua a ser o símbolo maior do craque apanhado nas teias da toxicodependência.
No projeto 'A Minha Causa', Tarantini disseca os problemáticos dias do pós-futebol. As conclusões são assustadoras. «Há muitos casos de depressão. Não só jogadores, como treinadores, árbitros. É um problema recorrente nas carreiras desportivas, tal como noutras áreas da vida», contou ao zerozero, numa grande entrevista.
«No final da carreira, eu senti o que os jogadores costumam dizer que acontece: senti um vazio enorme. Dos relvados, das rotinas, minimizado por estar a trabalhar na tese e envolvido noutras atividades que me ocuparam a cabeça, mas de facto senti o que os outros referiam. Nem sequer imagino o que passaram os que não pensaram no pós-carreira.»
As palavras do atual adjunto do Famalicão ajudam a perceber a descida de Paul, Paul James, ao inferno. Homem inteligente, capaz de citar Shakespeare de cor e salteado, Paul fez parte do quadro de honra do liceu de Whithurch, em Cardiff, ao lado de um vencedor do Tour de France, Geraint Thomas, formou família e manteve-se no futebol mesmo depois de pendurar as chuteiras.
Teve algum êxito, de resto, como selecionador feminino e masculino dos sub20 do Canadá, antes de tudo desabar. Paul está há 13 anos desempregado e sem casa há mais de seis. Em 2019, antes da pandemia, fugiu do Canadá e voltou Reino Unido, à procura não sabe bem de quê.
Paul foi estudante, futebolista, está no Hall of Fame do soccer canadiano, foi treinador, comentador televisivo, teve uma coluna de opinião famosa num relevante jornal. Tudo perdeu.
«Fumei cocaína pela primeira vez em 1998. No início não era todos os dias, à vezes estava meses sem consumir», confessa, sentado no chão da Estação de Embankment, com vista privilegiada para o turístico London Eye.
«Não considero correto o uso das expressões junkie ou viciado. Essas palavras criam uma irracionalidade e uma série de rótulos que nos colocam ao mesmo nível dos criminosos, da escumalha. Como é que alguém pode recuperar se for apelidado de sem abrigo e viciado em crack?», reflete Paul James, incapaz de perceber que esse é precisamente o seu estado.
«Perdi o meu emprego na Universidade de York, em Toronto, onde treinava a equipa de soccer. Souberam da minha situação em 2009, pedi ajuda e eles tinham o dever de me oferecer apoio. Fui forçado a demitir-me, quando precisava de passar algum tempo numa clínica de reabilitação e voltar limpo.»
Seguiram-se anos de desorientação, com o consumo de drogas a aumentar e a lucidez a diminuir. Sem apoio financeiro e familiar, Paul caiu. Fez greves de fome à procura de justiça, por considerar ilegal o despedimento da universidade, mas os tribunais nunca lhe deram razão.
«Não há uma guerra às drogas, mas uma guerra às pessoas. São os mais vulneráveis que sofrem da devastação do estigma: exclusão social, pobreza, marginalização.»
Paul James segura em fotos do México-86. Camisola branca, calções vermelhos, o símbolo da federação canadiana, Paul e Michel Platini a disputarem a bola. «Fizemos milagres para chegar lá e conseguir resultados dignos.»
Meses antes do torneio, Paul partiu um dedo do pé direito e teve de jogar com uma chuteira acima do tamanho normal, para suportar as dores. Nada que se compare ao sofrimento atual. Não vê a família há quatro anos, a mãe faleceu em junho e só foi informado dois meses depois, os amigos desapareceram.
«Sinto orgulho no que fiz no futebol, mas estou revoltado pela forma desumana como tenho sido tratado nos últimos anos.»
Chris Ramsey e Paul Peschisolido, antigos colegas no futebol, têm enviado a ajuda possível. «A cocaína fez-me isto. O futebol era tudo para mim, não devia ter faltado um dia ao emprego. Isto é uma m**** de uma brutalidade.»