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    Avançado em entrevista ao zerozero

    O último «cantar do galo» de Hugo Vieira: «Daqui vou para casa»

    Histórias inacabadas. Prato do dia na passagem efémera que é a vida e, de forma mais concreta, o mundo do futebol. Mas há exceções, belas exceções, que não raras vezes resultam em histórias de amor que se tornam intemporais. Uma dessas histórias levou-nos até Barcelos.

    O dia era de jogo da seleção nacional feminina, que recebia a Noruega no anfiteatro do Gil Vicente em duelo da Liga das Nações. Mas àquela hora, enquanto a equipa de Francisco Neto realizava os exercícios de aquecimento, os holofotes estavam centrados a pouco mais de cinco quilómetros dali. Em Galegos Santa Maria, as portas do Estádio da Devesa, casa do Santa Maria Futebol Clube, abriram-se para o zerozero.

    Do outro lado, um filho da terra que decidiu ser a altura certa para regressar a casa e retribuir. Figura de culto quando o tema é Santa Maria, Hugo Vieira recebeu-nos no relvado que o viu nascer para o futebol. Ali começou uma caminhada que o levou ao clube grande da cidade, o Gil Vicente, mas também ao Benfica e aos grandes palcos da Sérvia e do Japão. Ali começou tudo e ali será o último «cantar do galo», mas só depois da retribuição.

    Assim conta o próprio Hugo, em entrevista ao zerozero.

    zerozero: Hugo, bem-vindo. A bola é sua. Obrigado por nos receber e agradecemos já também ao Santa Maria por nos ter aberto as portas do seu estádio. Aproveitando exatamente esse contacto com a bola, perguntamos quando é que surgiu o primeiro contacto com esse objeto.

    Hugo Vieira: É um dos grandes amores da minha vida. A minha mãe diz que eu, na barriga, já sabia que ia ser jogador, porque dava-lhe grandes pontapés. Estava o dia todo com a bola, desde que me lembro.

    zz: Quando é que o Hugo decide que vai jogar futebol? Parte de si?

    HV: Na altura, vim com uns amigos para o Santa Maria, o meu primo e mais dois ou três que eram do meu bairro. Viemos para aqui e eu era mais novo do que eles. Vim com seis anos e já competia com os de dez. Sempre competi com pessoas mais velhas e hoje em dia sou dos mais velhos do plantel. É um bocadinho por aí. Acredito que, mais a sério, comecei ali aos 14 ou 15 anos. Foi quando despertou o interesse de alguns clubes importantes, mas a verdade é que o Santa Maria nunca me deixou sair. Era a pérola deles e aqui me mantive sempre.

    zz: Começou ainda no campo pelado.

    HV: Sem dúvida, um grande «peladão» e com condições que nada têm a ver com as de hoje em dia. Hoje vemos as instalações e qualquer clube tem um sintético. O Santa Maria tem um relvado e dois sintéticos. Na altura, tínhamos só um pelado. Ainda era pelado aqui o relvado também, mas depois colocaram relva no estádio. Foi um passo importante para o clube, mas eu joguei sempre no pelado até aos meus 15 anos, quando integrei a equipa sénior.

    zz: Foi sempre homem de ataque?

    HV: [Risos] A verdade é que, pouca gente o sabe, eu comecei na baliza. Queria ser guarda-redes, só que pegava na bola e começava a fintar toda a gente. O treinador meteu-me na frente e desde muito cedo viu que a minha aptidão era para o ataque.

    zz: Porquê guarda-redes?

    HV: Não faço ideia. 

    zz: Não havia aí nenhuma influência?

    HV: Não, não havia influência. Quer dizer, o meu pai era guarda-redes e eu tinha mais jeito do que os meus colegas para a baliza, só que fazia muita falta à frente. Eles queriam que jogasse sempre a avançado, mas eu gostava de jogar na baliza numa idade muito precoce. Com o tempo, percebi que o meu grande amor era na frente e o golo. Sempre quis muito fazer golos.

    zz: É o Hugo que escolhe vir para o Santa Maria começar a formação? O que é que o motivou a ir para o Santa Maria e não para outro sítio qualquer?

    HV: O Santa Maria passou agora uns anos complicados. A minha vinda para aqui também é para ajudar bastante o clube a voltar ao patamar que merece. Passou uns anos complicados, mas nesse tempo em que vim para aqui, o Santa Maria era um dos grandes clubes da cidade. A par do Gil Vicente, na II Liga, era o grande clube da cidade. Depois o Gil foi para outro patamar e o Santa Maria, infelizmente, passou uns anos complicados. Era pertinho de casa, os meus amigos jogavam aqui e juntou-se o útil ao agradável.

    zz: Um Hugo muito jovem ainda. Já havia o pensamento de querer ser jogador ou era só para se divertir?

    HV: Eu sempre quis ser jogador, mas sem responsabilidade, se é que me entende. Eu dizia muito à minha mãe, e foi um erro gravíssimo que tive na minha vida: 'eu não preciso de estudar porque vou ser jogador'. É totalmente errado, mas naquela idade eu pensava que era o que estava certo. Depois vim estudar mais tarde. Foi aquela idade de rebeldia, eu costumo dizer que sou rebelde. Podemos estudar e jogar e aconselho a todos os miúdos que o façam. Mas eu tinha a certeza de que ia ser jogador. Tenho uma frase muito marcante na minha vida e na das pessoas que me rodeiam: a minha avó, que é um dos grandes amores da minha vida, dizia sempre 'Huguinho, joga-me o Euromilhões'. Ela jogava sempre. No ano em que me revelei aqui, em que fiz 50 golos, ela dizia-me 'Hugo, regista-me o Euromilhões, por favor'. E eu dizia-lhe 'está bem, não sei porque é que você joga, mas está bem'. Ela dizia 'e não jogas porquê?' e eu respondia 'porque tenho o Euromilhões nos pés'. Dizia e digo isto muitas vezes, em tom de brincadeira, mas a verdade é que muita gente me fala disso, porque marcou as pessoas que o ouviam.

    zz: E a verdade é que correu bem.

    HV: Sim, felizmente correu bem.

     

    zz: 2005/06. A época em que o Hugo se afirma aqui no Santa Maria, com 17 anos. Já trabalhava antes com o plantel sénior? Ainda tinha anos de júnior para «gastar».

    HV: Comecei a jogar nos seniores com 15 anos, como juvenil de segundo ano. Inclusive, fui o melhor marcador. Depois joguei com 16, fui para o Bordeaux, dos 17 para os 18 foi um bocadinho turbulento. Voltei, vou para o Estoril, que não correu muito bem por outras coisas, em termos de empresários e treinadores, e depois volto ao Santa Maria com 18 ou 19 anos. Aí é que foi o primeiro ano «a sério», digamos. Decidi: 'isto é para mim, eu vou mostrar que eles estão errados'. No Estoril foi quase como uma chapada de luva branca, se assim se pode dizer, e foi quando eu disse 'não, eu vou ser mesmo jogador, vou mostrar que estão errados e posso dar muito mais'.

    zz: Ainda assim, e corrija-nos se estivermos errados, mas de acordo com a nossa base de dados, são sete golos em 15 partidas em 2005/06, na Divisão de Honra da AF Braga. Nada mau para um jovem de 17 anos.

    HV: Foi mais. Lembro-me que isso foi meia época, depois eu fui para o Bordeaux e, quando voltei, joguei aí mais uns dez jogos e fiz mais de dez golos, penso eu, aí uns 15. A verdade é que os golos não eram tão importantes nesse momento. Não havia tanta visibilidade, não tinha nada a ver com o que existe agora. Foi como eu disse: as grandes memórias que eu tenho são depois desse ano, quando me foquei e comecei a treinar mais e a ser mais profissional.

    zz: Antes disso, como falou, há Bordeaux e Estoril. Isto gera alguma curiosidade: como é que um jovem de 17 anos, que está a jogar num distrital de Braga, acaba, no espaço de um ano, num dos clubes mais emblemáticos de França, ainda que na equipa B? Outro dado curioso: por empréstimo. Isto é um bocadinho invulgar...

    HV: Na altura, o falecido Manuel Barbosa, que era o maior empresário, veio ver-me a jogar e ficou completamente doido. Disse que nunca tinha visto nada assim e era ele que representava as maiores estrelas do nosso futebol e não só. Ele falou com os meus pais, reuniu com eles e disse que nunca tinha visto nada assim, que o que eu fazia aqui não era normal para um miúdo de 17 anos. Ele era muito amigo do Ricardo Gomes, que era o treinador da equipa principal, e levou-me para lá. O Ricardo, felizmente, adorou-me e queria que eu ficasse. Eu treinava com a equipa principal, com grandes estrelas na altura, quando o Bordeaux era o Bordeaux «a sério», e jogava pela equipa B. Só que eu não conseguia. A minha irmã era muito pequena na altura e não havia WhatsApp nem as tecnologias que há hoje. Não aguentei. Estive lá um mês sempre a chorar. Ainda aguentei três meses e qualquer coisa, mas disse-lhes que não aguentava e queria vir embora.

    zz: Depois há o Estoril e lá as coisas não correm nada bem. O que é que se passou ali?

    HV: Eu nunca falei disto. Não sou muito de falar do que aconteceu, principalmente quando não me diz respeito. Foi uma grande chatice entre o treinador da altura, que era o Tulipa, e o Manuel Barbosa, o empresário, no primeiro jogo para a Taça da Liga. Os representantes do Paris Saint-Germain e do Bordeaux vieram ver-me. Eu ia entrar, já estava tudo acordado, mas lesionou-se um central e ele fez a última substituição aos 65 ou 70 minutos para meter um central. O Manuel Barbosa ficou possesso. Entrou no balneário e foi muito feio. Desde aí, sem culpa nenhuma, nunca mais joguei. Nos últimos jogos, o treinador disse na frente do grupo todo que eu ia jogar, que era um profissional exemplar, mas a verdade é que depois, não sei porquê, nunca me meteu.

    zz: Sentiu que a sua passagem pelo Estoril estava terminada após essa discussão?

    HV: Sem dúvida. Eu queria sair em dezembro, mas não me deixaram sair. Ele [Manuel Barbosa] dizia que ia comprar o clube e pôr o treinador a andar [risos]. Eu também era muito jovem, era muito rebelde e penso que foi muito importante para o meu trajeto, até para aprender que eu ainda não era ninguém no futebol e que não podia ter certas atitudes.

    zz: Depois de voltar cá e ser muito bem sucedido, há o Gil Vicente. Um salto pequeno se tivermos em consideração que continua ao lado de casa, mas... é um salto para uma II Liga.

    HV: Sim e na altura não existia sair da regional para a II Liga. Hoje em dia, já existe porque isto está muito fácil. Na altura, fui dos poucos casos que aconteceu. Tinha propostas da I Liga, tinha outras propostas, inclusive lá fora, mas o Santa Maria tem muito boas relações com o Gil Vicente e só me deixava sair para lá.

    zz: No meio disto tudo, o Hugo ainda com 21 anos. Num espaço de quatro anos, vai dos distritais à II Liga, passa por Bordeaux, havia propostas de I Liga e do estrangeiro. Alguma vez parou para pensar no quão rápido tudo estava a acontecer?

    HV: Muitas vezes. Costumo dizer que desde esse ano em que fiz os 50 golos, em quatro anos estava a ir do Santa Maria dos distritais a assinar pelo Benfica. Foi tudo muito rápido. Eu tive quase um ano de paragem com uma lesão grave, no Gil Vicente. No ano em que estive bem, fui muito importante para a subida. O primeiro ano de I Liga também fui muito importante. Era a cara do clube e fomos à grande final da Taça da Liga, o que não é normal para o Gil Vicente. Comecei a fazer a minha história, juntamente com aquele plantel incrível, aquele grupo de homens magníficos que criámos. Conseguimos coisas muito bonitas.

    zz: Há uma ascensão gigantesca em muito pouco tempo, mas não podemos esquecer que o Hugo ainda era muito jovem. Fora do campo, esta ascensão também traz outro peso. São mais olhos colocados em si. Como é que foi esta transição fora do campo?

    HV: No início, lembro-me que estava um bocado retraído. Nem queria ir jantar fora, porque as pessoas conheciam-me. Lembro-me que o meu primeiro grande jogo foi para a Taça da Liga, contra o FC Porto. O treinador era o meu grande amigo, André Villas-Boas. Até hoje, quando está comigo, diz que fui eu que lhe tirei o único título que ele não ganhou naquele ano. Empatámos 2-2 em casa e eu fiz os dois golos. A partir desse jogo, os olhos foram postos em mim e as pessoas começaram a ficar muito atentas ao meu trabalho. Aí tive a certeza que era uma questão de tempo até ir para outros patamares.

    @Kapta+

    zz: Que surgem depois. No Gil Vicente é novamente bem sucedido e surge o patamar que muitos jogadores sonham: o clube grande. Quando o Hugo percebe que vai ser jogador do Benfica, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça? 'Consegui'?

    HV: Sim, eu lembro-me que tinha muitas propostas. Aí sim, tinha muitas propostas. Lembro-me que jantei com uma das pessoas mais importantes do FC Porto numa sexta-feira. Falei com eles, fizeram a proposta e eu fui no sábado para baixo, para assinar pelo Sporting, na altura. Fui para baixo com tudo acordado, depois cheguei e eles queriam mudar algumas coisas, não sei porquê. Depois vem o Benfica. Depois de me ligarem, disse que não queria ouvir mais ninguém e assinei pelo Benfica. 

    zz: No fundo, podia ter ido para qualquer um dos três grandes.

    HV: E o SC Braga. O SC Braga era a equipa que mais me queria, que mostrava isso. Talvez tivesse sido o melhor para mim. Costumo dizer sempre que não me arrependo de nada, é porque tinha de ser assim. Depois fui para lá e senti um carinho magnífico. Só tenho a agradecer.

    zz: Chega ao Benfica com as suas expetativas. Acabou por não correr bem.

    HV: Sim, houve muita coisa negativa e muita coisa positiva. Serve para nos tornar mais fortes, como digo sempre. Infelizmente, as coisas não correram como o expectável, apesar de eles me quererem muito. Senti um carinho especial lá. Ainda no outro dia fui fazer o jogo deles com o Gil Vicente e estive com toda a gente. Tratam-me muito bem. Mas a verdade é que não joguei, se calhar por muita imaturidade. O treinador não ajudou, não soube falar com um miúdo muito novo ainda. Eles queriam que eu ficasse, mas ele dizia 'vais ficar aqui, vou-te trabalhar este ano e para o ano és tu e mais dez, mas este ano não vais jogar'. E eu disse-lhe 'eu quero jogar. E se treinar melhor do que os outros?'. Era muito inocente. 'Esquece o treinar, Hugo. Não vais jogar, para o ano jogas'. Não aceitei muito bem isso e pedi para sair. Foi muita luta, não me queriam deixar, mas depois lá me deixaram ir e correu tudo mal.

    zz: Sente que foi a rebeldia de que falava há pouco?

    HV: Talvez um bocadinho de rebeldia, misturada com falta de humildade. Estamos a falar de um Benfica a sério, do Cardozo, Rodrigo, Di María, Aimar, Saviola. Estamos a falar de nomes muito poderosos, eu tinha de saber esperar pela minha oportunidade e não soube.

    zz: E o Hugo também vinha habituado a jogar...

    HV: Pois, esse foi o grande problema, ser a cara do clube e querer jogar. Eu sempre quis jogar. Mas é como digo: não me arrependo. Sou grato a toda a gente que passou pela minha carreira, agradeço muito. Estou muito feliz com a minha carreira e isso é o mais importante.

    zz: Chega ao Benfica certamente com sonhos para realizar e quando percebe que não é ali que vai conseguir... doeu?

    HV: Muito sinceramente, depois do que aconteceu não era, de todo, o futebol o que me preocupava mais. Eu assinei pelo Benfica, foi como se conquistasse o Mundo e dois meses depois, a minha ex-esposa foi diagnosticada com uma doença gravíssima. Tudo passou para segundo plano e o futebol não era, de todo, a minha preocupação.

    zz: Até porque depois há Gijón, há Braga e o Hugo acaba por não jogar muito...

    HV: O Gijón é um clube que foi incrível comigo. Eu nem duas semanas lá estive. Eles disseram 'Hugo, vai para Portugal. Faz o que tiveres a fazer e o futebol não é, de todo, o mais importante' e deram-me a liberdade de eu ficar o tempo que quisesse. Ainda fui [de volta a Espanha] e tentei, mas não conseguia. Tinha obrigatoriamente de tomar decisões e vir cá para perto. O futebol não era o mais importante.

    zz: O Hugo volta depois a emigrar e surge o Torpedo. Rússia... como é que aparece na mesa?

    HV: Eu tinha algumas propostas aqui e de vários clubes da I Liga, mas não era nenhum dos grandes. Optei então por ir para outra liga, conhecer outras culturas e ainda bem que assim foi.

    zz: Queria algo novo nessa fase?

    HV: Sim. Basicamente, eu tinha algumas propostas e a da Rússia era bastante atrativa financeiramente e optei por ir decidir a minha vida em termos financeiros. Infelizmente, depois não foi o que aconteceu. Fiquei sete meses sem receber, mas é o que o futebol nos traz.

    zz: Há uma série de passagens por países «periféricos», se assim quisermos chamar. Japão, Sérvia... contextos muito diferentes?

    HV: Sem dúvida. Quem não conhece a Sérvia é normal não ter noção, mas estamos a falar de muita qualidade. O Estrela Vermelha é um colosso europeu, ganhou a Liga dos Campeões. Lembro-me, na altura, que foi manchete dos jornais o Ibrahimovic assinar pelo Paris Saint-Germain e não ter fotografia com a Champions e eu tinha uma fotografia de apresentação com a Champions. É caricato eles terem colocado isso lá nas capas dos jornais. Foi onde mais me senti jogador, a verdade é essa. O dérbi de quarta-feira [n.d.r. frente ao Partizan, agendado para dia 27 de setembro] foi adiado devido a uma situação que aconteceu no Kosovo, mas pediram-me vídeos motivacionais para os jogadores que lá atuam neste momento. São coisas que só quem vive, quem foi lá e viu pode perceber um bocadinho do que é a rivalidade, do que é um dérbi e amor por um jogador.

    zz: Disse que foi onde se sentiu mais jogador. O que é que o fez sentir isso? Confiança, condições?

    HV: O carinho que as pessoas me davam. Sou um privilegiado porque foi incrível em todos os clubes onde estive. Falei há pouco do SC Braga e do Benfica. Era incrível o apoio que me davam. O Gil Vicente também, estou na minha terra, em casa. Todos os clubes me deram uma atenção especial, mas na Sérvia...

    zz: Estamos a falar de pessoas que enchem pavilhões, enchem estádios.

    HV: Eu ia ver um jogo de basquetebol, por exemplo, que metia 12 mil pessoas. Eles a jogar basquetebol e os adeptos a cantarem o meu nome. São pequenas coisas que são poucos os jogadores que vivem isso. Ter um estádio com 75 mil pessoas a gritar o meu nome, que aconteceu lá e no Japão - lá foram 60 mil, no Japão 75 -, são coisas que eu acho que todos os jogadores mereciam sentir pelo menos uma vez na vida. Não há palavras para descrever.

    zz: E facilita muito o trabalho.

    HV: Sem dúvida. Em termos motivacionais...

    zz: Depois há o Japão. Uma mudança muito drástica da Europa para a Ásia, com diferenças também certamente no estilo de jogo. Porquê o Japão?

    HV: Não sei [risos]. A verdade é que tive propostas, em junho, de clubes como o Borussia Dortmund e o Marseille, entre outros. Em Espanha também, de primeira liga, desde Alavés a Sevilla. Tive várias propostas e eles não me deixaram sair porque o presidente foi «apertado» e eu não podia sair antes das pré-eliminatórias da Champions. O presidente veio ter comigo e disse-me 'Hugo, não te posso deixar sair porque eles matam-me'. Estas foram as palavras dele. Estávamos a falar de propostas muito boas para mim, que depois não eram tão boas financeiramente, apesar de serem muito boas. Mas se eu tenho aqui dois e depois oferecem-me um, estamos a falar de uma diferença muito grande. Foi um bocadinho de mágoa, não sei se posso dizer mágoa, como 'vou-me vingar'. Aí está a tal imaturidade e o único prejudicado fui eu, na verdade. Depois surge o Japão, pesquisei sobre o país, perguntei a alguns amigos meus e falaram-me maravilhas. Um dos meus sonhos era conhecer o Japão e eu não sabia que era tão bom. Foi, de longe, o melhor país onde vivi, com uma cultura...

    zz: Foi de fácil adaptação?

    HV: Muito fácil. Qualquer pessoa que goste de educação, que goste das coisas corretas, gosta de viver no Japão.

    zz: E o campeonato? Os números dizem que sim, mas gostou de jogar lá?

    HV: [Risos] Dois anos, 42 golos. Não é qualquer um que o faz. Apesar dos números, só a simples oportunidade de viver no Japão, de sentir o amor que senti lá, de ter o estádio completamente cheio a gritar o meu nome tão longe do meu país e com milhares de bandeiras portuguesas na bancada... quem me segue há muitos anos e viu os meus jogos lá, sabe do que estou a falar. Estamos a falar de coisas que não são normais.

    @Yokohama Marinos

    zz: Nos últimos anos, o jogador japonês também tem sido mais valorizado e mais exportado para a Europa.

    HV: Não é por acaso.

    zz: Há vários clubes. O Celtic tem vários jogadores japoneses, há o Morita no Sporting. Sentiu, quando lá esteve, que era uma questão de tempo até perceberem que no Japão...

    HV: Falei a muitas pessoas do futebol, de clubes importantes, que tinham de ir ao Japão recrutar. Tinham de ir ver os jogadores, tinham de ir ver o campeonato porque aquilo é muito forte. O campeonato lá é muito forte, tem muita qualidade. As pessoas não têm noção. Agora começam a ver alguns jogadores japoneses na Premier League, na Alemanha há montes deles.

    zz: O que é que os diferencia?

    HV: São muito tecnicistas. São muito bons e estudam muito o futebol, o adversário e como jogar. São muito bons.

    zz: Sérvia correu bem, Japão correu bem. Foram os melhores anos a título individual?

    HV: Sim, a par do Gil Vicente. Depois com os tratamentos, com o ter que ficar aqui perto, voltava sempre ao Gil Vicente. O Gil estava para descer durante três anos seguidos e eu vim e salvei, juntamente com os meus colegas, o clube da descida de divisão. Correu sempre bem a minha vinda para o Gil Vicente. Infelizmente, no primeiro ano em que não voltei, quando fui para a Rússia, foi quando desceram. Senti-me sempre muito importante e eles davam-me a liberdade do 'queres treinar, treinas. Não queres treinar, aparece para o jogo e domingo és tu e mais dez'. Na Sérvia e no Japão também foi assim. Depois, aconteceram coisas muito complicadas na minha vida pessoal e que me obrigaram a voltar do Japão também. A minha mãe teve problemas de saúde e eu queria estar, pelo menos, pelo fuso horário mais próximo. Por isso escolhi a Turquia e sem dúvida que foi o maior erro da minha carreira ter saído do Japão.

    zz: Acabou por não correr bem. O Hugo lesiona-se mal chega.

    HV: Uma história muito caricata. Eu nunca, em qualquer outro clube, fiz ressonância ao joelho para assinar. [Na Turquia] Fiz ressonância ao joelho esquerdo, ao joelho direito, ao tornozelo esquerdo e ao tornozelo direito. Fui um jogador caríssimo, fui substituir o Robinho na altura. Venderam o Robinho para me contratar.

    zz: E, portanto, não queriam que faltasse nada.

    HV: Nada, nada. Por ser um jogador tão caro, fizeram esses exames todos. Explicaram-me isso.

    zz: É prática comum na Turquia?

    HV: Não. Disseram que não, mas pelo facto de ser um jogador tão importante para eles e tão caro, assim o fizeram. Não conheço nenhum amigo meu, que já lhes perguntei, e disseram 'não, nunca fiz ressonância aos joelhos para assinar'. Não sei. A verdade é que nunca tinha tido problemas no joelho e ainda bem que fiz, porque se não fizesse ia ter muito mais problemas. Eu assinei às 14 horas. Estava tudo direitinho, o meu empresário a entrar no avião e eu ligo-lhe a dizer que tinha rompido os ligamentos. Assinei às 14 horas, fui treinar às 15 horas e nem era para treinar, fui muito sincero com eles. Eles disseram 'vá lá, o presidente nunca vem ver os treinos e veio ver-te, está muito ansioso para te ver jogar'. Fiz os «meinhos», estava bem para caraças. Depois fizemos aquele joguinho antes do jogo, aquele 10v10 em campo reduzido. Estava a correr bem até um lance em que me deram uma pancada e a minha perna virou completamente ao contrário e rompi tudo.

    zz: A passagem pela Turquia acaba por ficar marcada por essa lesão, mas seguem-se várias passagens por outros clubes e, se somarmos todos os jogos por esses clubes - há Gil Vicente, há o Craiova, há Malta - acabam por não dar os números do último ano em Yokohama. Efeitos da lesão?

    HV: Não. A verdade é que eu estava bem, mas houve muitas paragens. Um jogador com a minha idade, com tantas paragens é complicado. Sempre fui um jogador caro, é verdade. Tenho de admitir isso. Não era qualquer equipa que podia pagar o meu salário. Depois da lesão, as propostas que tive não eram tão atrativas financeiramente e eu não tive, talvez, a sabedoria e a humildade de perceber que tinha de reduzir. Fiquei seis meses parado, depois voltei e fiquei mais seis meses parado. Depois fui para o Craiova e as coisas não correram bem. Não me pagavam. Fui para a FIFA e ganhei. Optei por ir para Malta e aí sim, as coisas correram-me bem. Penso que fiz dez ou 11 jogos e seis golos. Fomos campeões. Fui para lá porque na Roménia tinham de me pagar a diferença. Depois, o salário que me apresentavam não fazia sentido.

    zz: Fica o último ano sem jogar.

    HV: Um ano e qualquer coisa sem jogar, sim.

    zz: Opção sua ou estava à espera de alguma coisa?

    HV: As propostas que eu recebia não me compensavam sair daqui. Os meus filhos estão na escola, a minha esposa tem aqui a loja dela, eu tenho aqui os meus negócios e ela também. Tinha que pesar muito bem na balança. Tínhamos de ir para o estrangeiro, que eu sem a minha família era impensável, e tinha de pôr na balança. As propostas que chegavam não compensavam.

    zz: Nesse período, não equacionou regressar mais cedo ao Santa Maria?

    HV: Não [risos]. A verdade é que agora, em junho, recebi bastantes propostas, mas só de II Liga, Liga 3 e Campeonato de Portugal. Não valia a pena. Mas despertou-me aquele bichinho de voltar a jogar e o meu primo, que veio em dezembro para o Santa Maria, estava sempre a ligar-me para vir, mas eu não queria. Não queria porque, aí está, eu perco dinheiro. Eu costumo dizer ao presidente, na brincadeira, que eu perco dinheiro em jogar. Mas penso que foi uma maneira de retribuir tudo aquilo que o Santa Maria me dá. A visibilidade - passámos mais uma eliminatória da Taça de Portugal, que já não jogavam há oito anos, e vamos lutar para subir, que não acontece há muitos anos - e os adeptos do Santa Maria, por tudo o que me deram, acho que merecem que eu agora faça um sacrifício grande para retribuir e os pôr a lutar por tudo mais uma vez.

    zz: Nesse ano em que não jogou, as propostas não agradavam e o Santa Maria não era uma opção. Estava pronto para dar por fechado?

    HV: Pensei muitas vezes nisso. A minha família dizia sempre 'pensa bem, tens a oportunidade de jogar'. Tinha propostas da segunda liga de Espanha, um bom campeonato, Índia, Roménia - nem pensar outra vez -, Cazaquistão, só que não valia a pena. Em Malta, o clube onde eu estava [Hibernians], foi quem mais me lixou a cabeça, no bom sentido. Eu gostei muito deles, mas financeiramente não fazia sentido.

     

    zz: Agora acaba por voltar aqui. É para fechar uma história?

    HV: Sem dúvida. Daqui, como costumo dizer, só vou para casa.

    zz: Aqui vai fechar.

    HV: É. Não sei se mais um, dois ou três anos, mas quando eu parar aqui, vou fechar.

    zz: E aqui encontra um contexto muito diferente daquele que tinha quando saiu daqui. Um campeonato mais competitivo hoje em dia em Braga. Olhando à última vez que esteve cá, sente esse crescer da qualidade?

    HV: Muito sinceramente, pelo contrário [risos]. As nossas equipas naquela altura eram muito melhores. Os miúdos daquela altura eram muito melhores do que agora, apesar de haver muita qualidade. Acho que é pela falta de oportunidade na I e II Liga, os jogadores tinham de vir para estas realidades. Hoje em dia, não. Qualquer jogador tem uma oportunidade na I ou II Liga. Apesar de que nós temos aqui três ou quatro jogadores muito bons. Aconselho a virem cá porque vão gostar do que vão ver. Juntámos um bocadinho de tudo, a rebeldia dos mais novos com a experiência dos mais velhos.

    zz: Fechar aqui é o que sempre quis?

    HV: Sem dúvida alguma. Sempre dizia e eu e o Bruno [presidente] sempre falávamos que aqui era onde eu gostava de terminar a minha carreira. Aqui é a minha casa, desde os seis anos que vim para cá jogar. É um clube que me deu muita coisa e, aí está, esta é a oportunidade de eu retribuir. Ainda estou muito bem fisicamente, sinto que tenho muito para dar ainda e penso que é o ideal tanto para mim como para eles.

    zz: Três títulos, mais de 300 jogos e mais de 150 golos. É uma boa carreira.

    HV: Isso são vocês que têm que me dizer. Se no início da minha carreira me dissessem que eu ia ganhar o que ganhei, fazer os golos que fiz e jogar onde joguei, eu dizia 'não brinques'. Acho que é uma carreira lindíssima. Quem conhece e quem sabe a minha história, torna a carreira ainda mais importante, ainda muito mais difícil de o fazer. Estive alguns anos impossibilitado de estar a dez por cento, quanto mais a 100. Depois de conquistar o que conquistei, só tenho que estar muito orgulhoso e em paz.

    zz: Falta aqui alguma coisa, algo que quisesse mesmo ter?

    HV: O que é que eu posso pedir mais? Seria injusto da minha parte pedir mais alguma coisa. Claro que gostava de subir de divisão este ano. Não é fácil, há equipas muito fortes e com três ou quatro vezes mais do que o orçamento do Santa Maria. Mas claro que gostava. Gostava de ganhar a Supertaça, que ganhámos contra todos os prognósticos. Mais um título e estamos em mais uma eliminatória da Taça de Portugal, vamos ver quem aí vem. Era bonito ser uma equipa que me diz muito, como o Benfica, o SC Braga ou o Gil Vicente [n.d.r O sorteio realizado entretanto ditou o Penafiel como adversário]. Pela minha história, acho que era muito bonito. Mas se puder ganhar mais um título, uma subida de divisão ou a Taça, era muito bom.

    zz: Seleção. Houve uma altura em que se falou muito do Hugo Vieira para a seleção, quando as coisas lhe corriam muito bem lá fora. Sentiu que devia ter acontecido e que falta nesse currículo?

    HV: Não. Claro que merecia. Ainda ontem me falaram disso. Uma pessoa importante do futebol nacional disse que foi a maior injustiça da seleção nacional. O que posso dizer? Fiz o que tinha a fazer. No Europeu de 2016, fiz 28 golos no campeonato e só levámos um avançado. Penso que foi a única vez na história em que só levámos um avançado centro, o Éder, que tinha de ir e deu-nos o título. Mas eu fiz 28 golos e só levámos um avançado. Que é que posso dizer? São coisas que me passam ao lado. Se merecia ir? Merecia. Eu sei disso, toda a gente sabe disso, o selecionador sabe disso e os jogadores sabem disso, eles próprios me diziam. Mas aquilo é um grupo restrito e nem sempre os melhores vão, infelizmente. É o que nós temos [risos].

    zz: O Hugo Vieira de hoje ainda é feliz a fazer isto?

    HV: Sem dúvida, muito feliz. Sou muito feliz a fazer isto, muito feliz com a minha vida, com as pessoas que me rodeiam. Estou mesmo muito bem e em paz. Tendo saúde, como costumo dizer sempre, não posso pedir mais nada.

    zz: Hugo, muito obrigado.

    HV: Obrigado.



    Portugal
    Hugo Vieira
    NomeHugo Filipe da Costa Oliveira
    Nascimento/Idade1988-07-25(35 anos)
    Nacionalidade
    Portugal
    Portugal
    PosiçãoAvançado (Ponta de Lança)

    Fotografias(60)

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    motivo:
    Grande jogador mas
    2023-09-29 16h06m por vegaz
    Um bom jogador que infelizmente tomou (sucessivamente) decisões erradas. Isto não o terá impedido de fazer grandes coisas e certamente de se assegurar financeiramente.

    O que fez na Sérvia e no Japão poderia ter feito em Portugal ou mesmo em campeonatos de maior prestígio. Boa lição para outros jovens serem mais pacientes.
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