Um exemplo de coragem, humildade e reconstrução. O sonho do futebol guiou a infância e adolescência de Fábio Pinhão, cuja qualidade atraiu em tenra idade o interesse do Sporting e a oportunidade de rumar à Academia de Alcochete. A adaptação foi rápida e chegou a envergar a braçadeira de capitão, mas a transição para sénior não teve o desenvolvimento esperado.
Do boca-a-boca, apercebemo-nos com surpresa do novo rumo da sua vida. O Pinhão, que assim como Fábio Cardoso e Aurélio Buta gerou muita expetativa a nível desportivo na região de Águeda, dedica-se agora à Construção Civil. Uma imprevisível mudança de rumo, sem o glamour dos relvados.
Em serviço na capital portuguesa, atendeu-nos a chamada após mais um jantar com os «companheiros de luta». Bem resolvido e sem arrependimentos, recordou-nos a passagem pela formação do Sporting e as atribuladas aventuras no pós-Alcochete, tempo marcado por algumas lesões graves.
Terminado um sonho, não teve medo de arregaçar as mangas e encontrar um novo caminho, tão ou mais digno. Um belo relato.
Foi no clube da terra que Fábio Pinhão começou a dar os primeiros toques na bola, ao serviço da modesta Associação Desportiva Valonguense. Quem já contactou com pessoas deste clube, sabe dos muitos relatos da sua habilidade e exibições diferenciadas para aquele nível. Talento em potência e que, naturalmente, cativou o interesse de um dos grandes do futebol português.
«Os contactos com o Sporting chegaram por volta dos meus 12 anos. Jogava no clube da terra como qualquer miúdo. Num certo dia chegou um fax, era assim na altura (risos), do Sporting à AD Valonguense. Uma convocatória para me apresentar nos Campos Universitários em Lisboa, com o intuito de fazer captações. Não tinha noção que estava a ser seguido por eles», começou-nos por dizer.
«Apresentei-me em Lisboa na data marcada, era uma seleção de cerca de 60 jogadores. Começámos a treinar de manhã, o grupo foi reduzido para 22 na parte da tarde e no final do dia ficámos reduzidos a três. Aí chamaram os meus pais e perguntaram se era possível começar a fazer alguns torneios inserido nas equipas do Sporting, quando faziam deslocações ao Norte. No final desse ano, entraram diretamente em contacto connosco e surgiu o convite para rumar a Alcochete», afirmou.
De mochila e ilusão às costas, Fábio rumou à margem sul do Tejo para abraçar uma oportunidade ímpar. O sonho tornou-se realidade e o dia-a-dia passou a ser de convivência com grandes craques. Com o suporte dos pais, que fizeram por estar presentes apesar da longa distância, a adaptação acabou por ser de sucesso. Dentro e fora das quatro linhas, explica-nos.
«Fui para o escalão sub-14. É uma idade ainda precoce, mas a adaptação foi boa. Tínhamos as melhores condições para viver e estudar. Acompanhamento psicológico, tutores, etc. Os meus pais fizeram um grande esforço e tentaram ir lá o máximo de vezes possível. Vínhamos pouco a casa, só nas férias e se não existissem torneios ou algo assim.»
«A nível desportivo as coisas também arrancaram bem. Gradualmente fui evoluindo e tive desde cedo muito tempo de jogo. Durante a minha estadia na Academia fui capitão da geração de 1997.»
«Construí uma relação muito boa com vários companheiros: Rafael Barbosa, José Postiga, Rodrigo Ferreira, Ricardo Silva, Pedro Silva, Pedro Delgado, que joga na China. Ainda recentemente falei com ele, um grupo de amigos bastante porreiro.»
«Também partilhava espaço e convivia com Iuri Medeiros, Ricardo Esgaio, Tobias Figueiredo, Ilori, Bruma, etc. Pessoal mais velho e alguns a fazerem excelentes carreiras», revelou.
O salto para o escalão de juniores acabou por resultar na saída, primeiro por empréstimo, do Sporting. As mudanças na estrutura da formação dos leões contribuíram também para este desfecho, como nos confessa o antigo jogador.
«Na transição para juniores deixam de existir duas equipas por escalão e o Bento Valente, um dos diretores, foi sincero comigo. Ia ser difícil ter espaço durante aquela época e deram-me a escolher entre ficar no plantel e tentar a sorte, ou sair para rodar. Acabei por ser emprestado [Anadia] e continuei a ser acompanhado, com a promessa de voltar.»
«Só que a estrutura do Sporting sofreu grandes alterações durante aquele ano e, por exemplo, o Bento Valente saiu do clube. Pelos contactos do meu empresário com os novos responsáveis percebemos que deixaram de contar comigo. Sem mágoas, foi altura de procurar uma nova equipa.»
A uma curta e atribulada passagem pelo Belenenses sucede-se uma época «especial» em Barcelos, onde concluiu o seu percurso de formação. A passagem para sénior, contudo, acabou por ser afetada por exigências do Sporting, devido a verbas a serem recebidas pelo emblema de Alvalade. Estar perto de casa voltou a ser solução.
«Tinha fechado para rumar ao Belenenses. Prometeram-me um salário e um apartamento para ficar. Só que passaram um, dois meses e estava a viver num anexo debaixo das bancadas do Restelo, sem receber. Alertei o meu empresário e rapidamente encontramos a solução Gil Vicente.»
«Vivi em Barcelos nesse ano, cumpriram com tudo e fiz amizades para a vida. Tinha habitação, refeições e um ordenado. Uma experiência que me marcou e recordo com muito carinho. Pessoas fantásticas...»
«Ia arrancar o meu percurso sénior e até surgiram algumas coisas interessantes do estrangeiro, de segundas ligas. Só que surge um grande problema com a direção do Bruno de Carvalho, intransigente nos direitos de formação a que o Sporting tinha direito devido à minha passagem lá. Ao assinar um contrato profissional, tinha de pagar essas verbas.»
«O Sporting não abdicou e limitou um pouco as minhas opções nessa fase. Acabei por regressar ao Anadia e ir para o CNS [atual Campeonato de Portugal]. Infelizmente é nessa fase que começam as lesões graves», admitiu.
O calvário apareceu e os joelhos acabaram por ceder, o que contribuiu para o final abrupto da carreira de Fábio Pinhão. De tom mais triste, o ex-jogador recorda-nos momentos mais difíceis a nível mental e uma passagem infeliz pela Suíça, o ponto final no capítulo futebol.
«As coisas até estavam a correr bem, mas na primeira eliminatória da Taça de Portugal fiz uma rotura de ligamentos cruzados num joelho. Sete meses parado, só voltei nos últimos jogos do campeonato. Entretanto surgiu a hipótese de ir para a II Divisão B da Suíça [FC Ibach], para tentar ganhar ritmo e jogar.»
«Estava a recuperar a confiança e a pré-época correu bem, porém, na preparação para a terceira jornada, sofri a mesma lesão no outro joelho. Mais do que a nível físico, terminaram as forças mentais para lutar pela minha carreira.»
«Tinha um tio meu lá e esse acompanhamento familiar, só que não foi nada fácil. Desanimei muito, quando estava a recuperar volta-me a acontecer uma lesão grave. Optei por, mais tarde, apanhar o avião de volta para Portugal e meter o futebol um pouco de lado. '20 anos, os dois joelhos operados: ainda vale a pena?'»
«Foi a altura de tomar uma decisão drástica e seguir outro rumo. Num patamar mais acima até tinha investido em nova recuperação, mas optei por reconstruir a minha vida e futuro», desabafou.
Ao entrar na casa dos 20, Fábio estava de regresso às origens e com o desafio de reconstruir a sua vida. Apesar das dúvidas naturais, não baixou os braços e procurou a felicidade, que acabou por encontrar no difícil ramo da Construção Civil. Mesmo que os joelhos continuem a recordar mazelas antigas, em dias mais carregados, o gostinho pela arte começou a surgir.
«Não foi fácil voltar a viver com os meus pais (risos). Sempre fizeram tudo por mim, mas desde os 13 anos estava habituado à minha independência. Tinha de desenrascar-me e fazer pela vida. Arregacei as mangas e fui trabalhar para uma fábrica, só que não gostei muito. Depois, entrei no ramo da Construção Civil e é uma atividade que aprecio. Aprendi o ofício, tive capacidade de ouvir e, neste momento, há muita procura devido à falta de malta de mais jovem.»
«Ainda existe o estigma social, o 'olhar de lado' para esta profissão. Sou sempre a pessoa mais nova nos locais em que trabalho. Tive muita vontade de aprender e saber com as pessoas mais experientes.»
«Felizmente as coisas estão a correr bem e, desde o último ano, o meu patrão deu-me oportunidade de começar a coordenar equipas, o que estou atualmente a fazer em Lisboa», confessou-nos, compreendendo os comentários que surgem devido à estranha mudança de profissão.
«Claro que esta mudança de vida é estranha para algumas pessoas. Vivi experiências que não estão ao alcance de todos, até pelo meio mais pequeno e próximo de onde sou natural. Tentam saber a razão para o futebol não ter resultado, comentam que 'foram os joelhitos', a 'noite' e até outras coisas...»
«Não posso culpar isto ou aquilo, até porque quando as lesões surgiram eu já não estava numa fase ascendente do meu percurso enquanto futebolista», lembrou.
Em jeito de despedida, porque a conversa já vai longa e o corpo pede descanso, ficam as boas memórias e a certeza de ter feito a melhor escolha. O futebol, como nos explica, é implacável. Só os melhores atingem o sucesso.
«Estar na Academia torna-nos em homens. É uma preparação para vida. Não tenho nada a apontar. Fiz lá grande amigos, seja jogadores ou colegas de secundária lá em Alcochete. É o que eu levo. Não voltei a ter qualquer contacto do Sporting depois da saída, porém, ficou o carinho e sigo a acompanhar o clube como adepto»
«O futebol é um mundo bastante difícil, ainda vejo isso por muitos colegas meus que lutam quase pela sobrevivência de ano para ano. Não conseguem sair dessa bolha. O filtro vai apertando e só ficam os melhores. Ficou pelo caminho esse sonho, no entanto, sou um homem perfeitamente resolvido com isso», concluiu.