É sempre o mesmo, estilo lógica da batata. No final de Dezembro, em tempo de balanço, surge à baila a pergunta ‘então e a palavra do ano’. Qual é? Argentina, pois claro. O título mundial ainda mexe. Vai daí, fomos à procura da dita cuja. Quem? Ora essa, da Argentina. Calma aí, há uma pessoa chamada Argentina?
(espanto)
Uma? Há até seis ou sete.
(espanto xl)
(espanto xxl)
Ai há, há. E é filha de um dos maiores goleadores da nossa história. Chama-se Matateu, também conhecido como a Oitava Maravilha. Antes de levantar a Taça de Portugal 1960 pelo Belenenses, numa final em que até marca ao Sporting, o avançado é pai de uma menina. Estamos num domingo, 28 Novembro 1954. No Jamor, às 15 menos 15, Portugal e Argentina entram em campo. Cumprimentos para ali, palmas para aqui, começa o prélio com o apito do inglês Archer William Leuty.
O número 11 português é Matateu, alcunha de Lucas Sebastião da Fonseca. Ao intervalo, já com 1:0 para a Argentina, os altifalantes do estádio anunciam a parentalidade de Matateu. Nos dias seguintes, a azáfama é grande pelo nome da filha. O jornal Record sugere Argentina, o pai Matateu aceita na boa. Ei-la 68 anos depois, ao vivo e a cores à nossa frente, em pleno museu do Belenenses, onde trabalha há quase duas décadas.
Nas vitrinas, taças e mais taças, galhardetes e mais galhardetes. De repente, a ala Matateu e Vicente com chuteiras, bilhetes de época, medalhas e outra memorabilia.
Rui Miguel Tovar - Argentina é divertido.
Argentina Matateu - Ahahah. Já era um nome grandioso, agora com o título mundial ganhou ainda mais encanto.
RMT - Ahahahah. Verdade. Alguma vez foi à Argentina?
AM - Nunca, mas já me convidaram.
RMT - Quem?
AM - O Di Pace.
RMT - Conheço o nome.
AM - Grande glória do Belenenses nos anos 50, jogou com o meu pai e, uma vez, em 2004, apareceu aqui no Restelo para ver dois jogos (Paços vs Belenenses e Belenenses vs Braga). Foi uma alegria imensa revê-lo, porque foi uma figura do Belenenses e um grande amigo do meu pai. E também do meu tio Vicente. Às tantas, durante uma conversa, ele convidou-me a ir.
RMT - Onde?
AM - Nem me lembro bem, ó Miguel. Diria Buenos Aires.
RMT - E não foi?
AM - Nunca fui, quem me dera.
RMT - E o seu pai?
AM - Ahhhh, ele foi à Argentina. Tenho quase a certeza. Viajou muito como jogador, estava sempre para lá e para cá.
RMT - E a sua mãe?
AM - Está bem, obrigada.
RMT - Ahahahah. Boa resposta, só que a pergunta tinha a ver com: e a sua mãe como fazia a sua vida com essa vida de futebolista?
AM - A minha mãe cedo percebeu o estilo do meu pai e cedo se descartou. Os dois não combinavam.
RMT - Então?
AM - O meu pai era um homem solto, ahahahah. Os meus pais separaram-se tinha eu três anos e consumaram o divórcio um tempo depois.
RMT - Conheceram-se cá?
AM - Nem mais. O meu pai, como se sabe, é de Lourenço Marques, Moçambique. A minha mãe é portuguesa, de Setúbal. Conheceram-se através do meu tio, irmão da minha mãe, um sócio do Belenenses. Houve ali uma química e tal, apaixonaram-se e tal, fizeram-me e tal.
RMT - Divorciaram-se e tal. Que tal a vida com pais separados?
AM - Vivia com a minha mãe e, às vezes, muitas vezes, estava com o meu pai. Ou ele ia buscar-me ao colégio São João de Deus ou o meu tio Vicente ia à casa da minha mãe.
RMT - Vicente, outra glória do Belenenses.
AM - Exatamente, e que glória. Ainda hoje vem cá ao Restelo em dias de jogo. Aliás, ele encontrou-se com o Di Pace na tal visita em 2004. O que se divertiram e o que nos divertiram a contar histórias dos anos 50. Aquilo é uma turma engraaaaçada, o Miguel tinha de ver.
RMT - A Argentina viu?
AM - Vi muita coisa, sim. Como lhe disse, estava muitas vezes com o meu pai e ele metia-me no mundo dele com a maior facilidade.
RMT - O mundo dele?
AM - O mundo da bola, dos jogadores, das fãs, das cervejas. Ahahahah.
RMT - Iam onde?
AM - Sobretudo às cervejarias Pomarense e Ribadouro, ambas na Avenida da Liberdade.
RMT - E?
AM - Magia, acontecia magia, ahahahah. Eles bebiam, falavam, divertiam-se e divertiam quem estivesse à sua volta, entre amigos e adeptos, que lhes pediam autógrafos a torto e a direito.
AM - Amigos do meu pai. Havia muitos, muitos jogadores.
RMT - Quem são os mais especiais?
AM - Para mim? Mário Wilson e Coluna, duas joias de pessoas. Hilário, outra joia. Mesmo. Muito, muito, muito simpáticos. Muito, muito, muito atentos. Gente boa, gente fina, gente com quem me identificava bastante pela generosidade e simplicidade. Nunca os vi de nariz empinado. Nem a eles nem às filhas. Já viu bem?
RMT - O quê?
AM - Todos os grandes jogadores de Lourenço Marques têm filhas.
RMT - Ai é?
AM - Coluna, duas. Wilson, uma. Eusébio, duas.
RMT - Matateu, uma.
AM - Matatua.
RMT- Ahahahahah.
AM - Sou uma Matatua. Fica-me bem.
RMT - E fora as cervejarias, andava com o seu pai?
AM - Muito. Ele ia buscar-me ao colégio, ligava-me sempre a dizer como estava e dizia-me sempre quando ia embora para o estrangeiro.
RMT - E levava-a ao futebol?
AM - Claro, isso nem se fala. Ia sempre ao Restelo pela sua mão.
AM - Ainda hoje. Digo-lhe isto, ó Miguel: ainda hoje, hoje mesmo, olhei para o relvado e vi-o marcar um golo dos dele. As memórias são assim, sempre presentes.
RMT - E viu o quê?
AM - Golos, festa rija.
RMT - Só?
AM - Também vi faltas, ele é marcado em cima por muita gente, coitado. Mas nunca o vi zangado com ninguém. Nesse aspeto, talvez seja a única parecença com o irmão Vicente. Ambos pareciam aceitar a dureza e, às vezes, a maldade do adversário. Quer dizer, não era bem aceitar. Era seguir o seu caminho para evitar problemas. Ainda me lembro de ele dizer uma piada sobre o assunto, em convívio com os adversários: ‘vocês batem-me lá dentro porque não deixo nódoas negras’. Ahahahah.
RMT - Ahahahaha. Pois, entendo.
AM - Fora do campo, Matateu e Vicente sempre foram diferentes. O meu pai foi sempre extrovertido, o Vicente ainda hoje é introvertido. Ambos gente fina, de trato fácil e bastante humildes. Só que o meu pai era mesmo extrovertido.
RMT - Então?
AM - Nunca teve uma casa fixa, andava sempre de um lado para o outro. Ora na casa de um amigo, ora de outro. Era a sua natureza.
RMT - Nos relvados, a sua natureza era o golo.
AM - Sem dúvida, foram muitos para todos os gostos e de todos os feitios. Era um fora de série e jogou até aos 55 anos de idade. Mesmo perto dos 40, jogou na primeira divisão e marcou. Um fenómeno. Em tudo. Como pessoa, como pai, como jogadores.
RMT - Qual é a melhor imagem do Matateu?
AM - Esta aqui [e aponta para a célebre foto do pontapé de moinho].
AM - É o Vasco. Andou com o Belenenses para todo o lado, o seu espólio deve ser qualquer coisa.
RMT - E a foto é onde?
AM - Na Covilhã
RMT - Até que idade é que viu o Matateu jogar aqui no Restelo?
AM - Até aos dez anos.
RMT - E depois?
AM - Ele saiu para o Canadá e eu fui para Angola.
RMT - Com quem?
AM - Com a minha mãe e o meu padrasto, que era tropa da Força Aérea.
RMT - Como mantiveram o contacto?
AM - Através de cartas, muitas cartas. Ainda as guardo. Em papel e no coração. Numa delas, pedi-lhe autorização para casar.
RMT - Ahahahah. E que tal?
AM - Nem pensar, proibiu-me.
RMT - A sério?
AM - A sério, ó Miguel. Como eu só tinha 18 anos, ele achava-me muita nova. Então, a minha mãe teve de me comprar o casamento porque o meu pai não aceitava a ideia.
RMT - Comprar o casamento? G’anda cegada, não?
AM - Nem imagina, Miguel. Uma trabalheira com tribunais pelo meio. Ainda por cima, em 1974, ali resvés com a revolução. Está a ver, não está? E eu só pensava em sair de Luanda para regressar a Portugal.
RMT - E manteve o contacto com o seu pai?
AM - Sempre, as tais cartas. Ele escrevia-me muito e até me sugeriu ir para o Canadá. Só que nã, nã. Não era, nem sou, pessoa de sair do meu sítio. Nasci aqui e por aqui ficarei.
RMT - Mas visitou-o?
AM - Sim, fui ao Canadá. E ele veio cá, a convite do Belenenses, em 1987, e conheceu os dois netos. Depois, veio outra vez e conheceu a neta Cláudia.
RMT - E as suas visitas ao Canadá?
AM - Sempre animadas, porque o meu pai tinha um jeito especial de ser.
RMT - Qual foi a última visita?
AM - Na passagem de ano 1999 para 2000. O meu pai já estava muito mal e telefonaram-me de lá à minha procura. Ele foi encontrado por amigos no chão da cozinha de casa e só parou no hospital. Aí, ele disse que desejava mais que tudo a visita da filha e do irmão. Fomos os dois. Primeiro eu, depois ele. Acho que foi assim. Ou então o contrário, já não me lembro bem. O que sei é que passámos o ano com ele.
RMT - Bem ou mal?
AM - O meu pai estava bem instalado, o hospital era como se fosse um hotel de cinco estrelas. Só que o seu estado inspirava cuidados mil. Foram-lhe diagnosticados dois cancros, um de sangue e o outro dos ossos.
RMT - Nem imagino a dor da notícia, quanto mais a dor física.
AM - Pois não, é muita coisa para processar. Mas a verdade é que ele brincava imenso connosco, com anedotas, e falava da horta.
RMT - Horta, o Matateu?
AM - Ele plantava nas traseiras da sua casa. E plantava tudo: batatas, cenouras, alface. Era um mundo, o seu mundo. Isso e a pesca, também adorava a pesca. E esse passatempo é desde sempre, pescou em Moçambique, pescou em Lisboa, no Tejo, e pescou no Canadá.
RMT - E comia o que pescava?
AM - Então não, claro que sim. O que ele adorava peixe. E cozido à portuguesa. E pezinhos de porco. E olhos de peixe.
RMT - A sério?
AM - Ainda hoje nunca conheci alguém que devorasse uma cabeça de peixe com ele. Deixava os olhos para o fim.
RMT - E para beber?
AM - Ahahaha. Uma cervejola, sempre uma cervejola. Nunca o vi beber outra coisa.
RMT - E é verdade aquela história...
AM - O da cerveja no balneário?
RMT - Exato.
AM - É, sim senhor. Acho que foi no tempo do Otto Glória. Ao intervalo, o meu pai bebeu a cerveja às escondidas dos colegas e lá ia para a segunda parte como se nada fosse. Às vezes, ele marcava. Outras, não. Quando lhe perguntava o porquê disso e como é que ele aguentava, a resposta era invariável: 'sai-me pelos poros, é o efeito da transpiração'. O meu pai tinha muitas frases que me ficaram no ouvido. Foi essa, aquela das nódoas negras a propósito da marcação impiedosa e a do ‘um jogo sem um golo meu não é um jogo’.
RMT - Verdade, ele era um goleador exímio. Tanto no clube como na seleção.
AM - Sim, um fenómeno de força, colocação. A rapidez com que se ataca a bola, mesmo de costas para a baliza, era notável. A esmagadora maioria dos companheiros e adversários falam desse estilo muito peculiar e há quem o considere mais homem de área que o Eusébio. Sabe uma coisa, ó Miguel?
RMT - Nem ideia.
AM - O meu pai jogou com o Eusébio.
RMT - Onde?
AM - Lá em Moçambique.
RMT - Está a brincar?
AM - Não estou, não.
RMT - A diferença deles era quê, 12 anos?
AM - 15.
AM - Jogavam lá no bairro. As mães conheciam-se, eram amigas, e eles passavam o dia a jogar. Aliás, o Eusébio chamava o meu pai de pai. O problema do meu pai é que chegou muito tarde a Portugal, já tinha 24 anos. E teve de fazer o exame da quarta classe.
RMT - Para?
AM - Para jogar no Belenenses.
RMT - Está a brincar? Era preciso o exame da quarta?
AM - Isso mesmo. O meu pai fez, passou e começou a jogar. Na estreia, marcou ao Sporting.
RMT - E é logo levado em ombros, não é?
AM - Sim, sim, é uma façanha muito falada aqui no Restelo. O meu pai foi logo muitas vezes em ombros. Uma vez, na RDA, veja bem.
RMT - Na RDA?
AM - Sim, sim, num jogo de qualificação para o Euro-1960. Portugal ganhou, 2:0 acho, e ele foi levado em ombros. Marcou um dos golos e fez uma exibição à Matateu.
RMT - Que categoria. Que categoria internacional, aliás.
AM - Ahahahah. Isso mesmo. O meu pai foi uma força da natureza. Chegou cá aos 24 anos e jogou até aos 39 na 1.ª divisão. E, atenção, marcava golos com essa idade. Aos Portos, Benficas e Sportingues dessa vida. Depois, emigrou e jogou até aos 55 anos.
RMT - Cinquenta e cinco não é deste mundo.
AM - Não é, não. O meu pai é mesmo do outro mundo. Ainda hoje se fala dele com entusiasmo e ternura.