«Tanto nos quiseram meter pressão na Segunda Liga que, no final, isso até nos deu jeito»

Entrevista a Luís Freire, dividida em três partes, na qual o treinador do Rio Ave falou do passado recente, da pré-época que atravessa e da temporada que tem pela frente. Também não faltou a reflexão ao futebol português

Nesta primeira parte, o treinador do Rio Ave fala do feito conseguido na época passada, onde teve de haver uma forçosa mudança de chip num clube que se habituou a cheirar a Europa e que, de repente, se viu numa descida de divisão. Todo esse processo mereceu-lhe uma reflexão.

No fim do artigo, pode ver a entrevista na íntegra.

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©Catarina Morais / Kapta +

«A parte mais difícil é as pessoas terem consciência do que é a Segunda Liga»

zerozero: Depois da festa, as canas já foram apanhadas?
Luís Freire: [risos] Primeiro, agradeço o convite, é com prazer que falo convosco. As canas já foram apanhadas como é lógico, a memória daquilo que nós vivemos ainda está bem viva. Não foi apenas o Luís Freire que contribuiu "com uma grande percentagem", foram todos que trabalham no clube, desde a direção, o presidente, até aos vários departamentos que o clube tem, o médico, o de comunicação, a rouparia, a malta da relva, toda a gente trabalhou muito para ajudar a equipa, e os jogadores, que são os protagonistas principais em conseguir o objetivo. Foi uma luta muito grande, como é lógico festejámos bastante esse feito, mas agora vem aí um desafio muito grande também e no final queremos festejar todos outra vez. Para isso, temos de estar todos muito prontos e muito disponíveis desde o primeiro dia, para juntos conseguirmos consolidar o Rio Ave na Primeira Liga.

zz: O Rio Ave sempre foi um clube que, nestes anos em que se cimentou na primeira divisão, foi muito conhecido por ter jogadores que vinham de um passo maior e que recuavam para um contexto em que tinham menos pressão. No ano passado, provavelmente, viu-se o ano de maior pressão do clube neste passado recente. Sentiu isso nas pessoas?
LF: Sim. Um clube que desce de divisão é sempre um clube marcado por alguma energia menos positiva. As pessoas estão tristes, desiludidas, ainda por cima porque se tratava do Rio Ave e não era claramente esse o objetivo nesse ano. Os adeptos estavam mais zangados, mais frustrados, porque não estavam à espera. Mesmo os próprios jogadores ficaram tristes e a quererem sair do clube, era a realidade. Portanto, apanhámos essa situação, mas também apanhámos uma vontade de mudar, de fazer transformações, de criar uma nova dinâmica, uma nova energia. Foi muito importante falarmos com toda a gente dentro do clube, dar-lhes essa esperança, essa energia positiva. Falámos com vários jogadores na perspetiva de eles ficarem e poderem-nos ajudar bastante a reerguer o clube, a fazer uma equipa forte. A direção estava disposta a tudo para conseguir a subida de divisão, a fazer uma boa equipa de segunda liga, tal como nós, que pretendíamos indicar o caminho. Mas é bastante complicada toda a gestão de algo como a descida de divisão.

zz: Qual é que foi a parte mais difícil nesse reset, nessa transformação?
LF: A parte mais difícil é as pessoas terem consciência do que é que é a Segunda Liga. O tombo, e depois a dificuldade que é de transformares uma equipa de Primeira Liga quase Liga Europa - porque o Rio Ave estava quase nesse patamar - e, de repente, mudares quase o plantel todo, reestruturares tudo e acertares no nível dos jogadores que permitam depois não só o nível de qualidade, mas também de mentalidade, de humildade, de capacidade de trabalho e de sacrifício para perceber o que é que é a Segunda Liga e conseguirem ficar em primeiro lugar. Com a pressão que está à volta, que também é uma contrariedade, também foi difícil de lidar a uma determinada altura, mas eu acho que essa pressão fez a equipa, e eu já estava pronto para isso, porque já passei por essas lutas, pelos títulos. Toda a estrutura, todo o clube, perceberam que tinham de se unir e se concentrar no trabalho diário, pois era assim que íamos conseguir. Depois, é a qualidade dos jogadores, qualidade do trabalho, um excelente ambiente criado por toda a gente dentro do clube e isso ajudou bastante a equipa.

zz: O mister até já falou numa entrevista que foi o primeiro ano em que não discutiu com ninguém dos jogadores.
LF: Ao longo dos anos, vamos tendo as nossas experiências a nível tático, técnico e de liderança, e foi um ano em que eu decidi também que queria ter prazer ao máximo naquilo que fazia. Havia um grande objetivo, mas eu sabia o caminho, tinha na minha cabeça bem o caminho definido para a equipa e, como eu sou em casa, fui com os jogadores. O máximo transparente, o máximo sincero. Adoro futebol, por isso transmiti-lhes também essa paixão que eu tenho. Transmiti aquilo que eu acho que é a maneira certa de andar no futebol e o compromisso diário uns com os outros. Não podíamos baixar o nosso nível, tínhamos um clube para ajudar, para devolver à Primeira Liga. Tínhamos alegria para contagiar toda a gente, para os adeptos verem o nosso esforço e também vermos a cara deles a sorrir e a festejar connosco. Incuti-lhes muito essa ambição, queria ver essas coisas todas a acontecerem, nós erámos capazes e transmiti-lhes muito o que é ser campeão, que é uma coisa diferente. Às vezes, só o somos uma vez na carreira.

zz: Emocionalmente, deve ter sido complicado fazer essa gestão, pois começaram muito bem, mas depois vieram alguns dissabores, que para si até podiam ser expectáveis, mas que para os adeptos talvez não. 
LF: Eu vou ser sincero... Quando eu ouvi falar do Rio Ave da Segunda Liga a ser comparado com o Chaves, com o Casa Pia, com o Penafiel ou com o Farense, e dizerem que tudo era muito mais fácil para o Rio Ave, eu acho isso uma desvalorização total do trabalho. Por exemplo, quem é que é o candidato este ano na Segunda Liga? Não sei, mas vai ter o dobro do orçamento do último? Enquanto que, na Primeira Liga, o FC Porto deverá ter um orçamento 20 vezes maior que o último. Tudo bem que só quem anda lá dentro sabe o que é a Segunda Liga, mas deu jeito a muita gente meter essa pressão no Rio Ave. A verdade é que nos deu também jeito a nós, porque a tivemos desde o início e, no final, já estávamos preparados e habituados a ela. Tanto quiseram que nós assumíssemos que, quando aconteceu, já estávamos preparados. E isso foi um dos segredos. 

zz: Nesse final, sentiu nos jogadores, no presidente, no staff uma maior dose de alegria ou de alívio?
LF: Eu sinto que, quem passou pela descida de divisão, teve um misto de alegria e de alívio. Quem veio para o clube de novo, ficou com alegria total de conseguir a subida de divisão. Quando o árbitro apita e acaba o jogo, é o filme todo a passar à nossa frente e o sentimento de termos conseguido. São muitas horas, muitos dias, muitos meses de trabalho, ouvimos e vemos muita coisa mas temos de ter sempre o foco no que interessa. Foi uma construção de toda a gente do clube, todos nós nos ajudamos para a equipa aparecer bem ao domingo. Depois, os jogadores, que se sacrificaram muito para que as coisas acontecessem. Somos uma família muito unida e isso passou para dentro do campo.

Veja a entrevista na íntegra: